A evolução do conceito jurídico de imposto - do estado liberal de direito ao estado social de direito
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5. O imposto no ordenamento jurídico português

Nesta sequência, afigura-se-nos importante realçar o que efectivamente se encontra consagrado no nosso ordenamento jurídico positivo. Para o efeito, cremos ser oportuno relevar, em primeiro lugar, o que vem expressamente disposto na nossa Constituição e depois na lei ordinária.

5.1. Assim, o n.º 1, do art.º 103.º da CRP dispõe que o sistema fiscal, além de visar a satisfação das necessidades financeiras do Estado, tem em vista a justa repartição dos rendimentos e da riqueza. Os n.ºs 3 e 4, do art.º 104.º acrescentam que a “tributação do património deve contribuir para a igualdade dos cidadãos” e a tributação do consumo “visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo”.

Cumpre salientar ainda que a actual LGT, no n.º 1, do seu art.º 5.º, faz também clara alusão aos fins da tributação, dispondo que esta, além de ter como finalidade a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, “promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento” [81].

Destes preceitos resulta que, no nosso ordenamento jurídico, quer a finalidade fiscal quer a extrafiscal são legítimas face à Constituição. Porém, ao acolher ambas, a CRP aparentemente não estabeleceu nenhuma hierarquia, o que, à partida, nos pode levar a considerar que se situam ao mesmo nível.

Todavia, uma leitura mais cuidada do sistema jurídico-constitucional positivo no seu todo, conduz-nos à conclusão de que, se por um lado, a Lei Fundamental acolheu a forma de um Estado Social, caracterizado por um comportamento estadual activo de conformação económica, social e cultural, por outro, afirma o primado dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, entre os quais, o direito à propriedade privada e a liberdade de iniciativa económica (cfr. art.ºs 61.º e 62.º da CRP). O que significa que a tributação não pode ser utilizada de forma tão intensa para a prossecução de fins extrafiscais até ao ponto de pôr em causa aqueles direitos e liberdades.

Por isso se afirme que o actual sistema jurídico-constitucional é informado por um “equilíbrio entre a intervenção económico-social do Estado e a defesa das liberdades do cidadão” [82].

5.2. Há, no entanto, um princípio do nosso sistema jurídico-constitucional-fiscal que pode trazer luz para a compreensão desse equilíbrio entre a actuação estadual na economia e o respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos. Referimo-nos ao princípio de Estado Fiscal.

O actual Estado Social, de facto, configura-se como um Estado Fiscal[83], significando que as suas necessidades financeiras são essencialmente cobertas pela receita oriunda dos impostos. Esta é, aliás, a nota predominante dos estados sociais de direito[84].

Ora, a satisfação das necessidades financeiras públicas pela receita fiscal deve ser entendida como uma transferência da receita da economia privada para o Estado[85], o que pressupõe a existência de uma separação entre o Estado e a economia [86]. No entanto, essa separação não deve ser entendida em termos rígidos, porquanto o princípio de Estado Fiscal [87] Social postula a responsabilidade estadual na direcção e na obtenção de um equilíbrio global da economia, fundamentalmente, em termos macro-económicos. Essa responsabilidade não colide com a liberdade de iniciativa económica privada que há-de guiar-se ainda pelos princípios liberais.

Cabendo a condução da economia principalmente ao sector privado e ao Estado a garantia do seu equilíbrio global, intervindo este apenas na sua direcção, em termos macro-económicos, necessariamente existe uma zona de intercepção das duas esferas de actuação, mesmo que essa zona seja limitada.

Segundo CASALTA NABAIS, cuja opinião partilhamos, o princípio de Estado Fiscal Social tem acolhimento na CRP, não somente atendendo ao princípio da subordinação dos poderes económicos ao poder político (cfr. al. a) do art.º 80.º da CRP) [88], mas, sobretudo, considerando o primado que o texto constitucional confere ao sistema dos direitos fundamentais, especialmente, aos direitos, liberdades e garantias, a que o direito de propriedade privada e a liberdade de iniciativa privada são análogos.

De onde decorre que a intervenção estadual, no Estado Fiscal Social, não pode expandir-se a ponto de inviabilizar a economia privada, sob pena de o próprio Estado Fiscal se auto-destruir, porque, uma vez prejudicada a economia privada, prejudicada está também a fonte essencial das receitas para a sustentação das políticas de conformação económico-sociais.

Deste modo, o referido princípio implica a co-existência da economia capitalista e a actividade estadual de conformação económico-social, sendo as despesas decorrentes, desta última, essencialmente cobertas pelas receitas oriundas da tributação [89].

Voltando à matéria da legitimidade das finalidades extrafiscais dos impostos, há que concluir que, no nosso sistema jurídico constitucional-fiscal, o princípio de Estado Fiscal exige que tais finalidades, a concretizarem-se pela via da tributação, não sejam tão intensas e abrangentes que ponham em causa a liberdade e o funcionamento do mercado capitalista [90], sob pena de se dar uma subversão da racionalidade económica liberal.

Assim, se pode afirmar que, no nosso sistema fiscal, o instituto jurídico-financeiro do imposto continua a desempenhar, predominantemente, uma função fiscal, podendo paralelamente prosseguir finalidades extrafiscais. Todavia, estas não podem anular de todo a primeira.


5.3. Mas a ser assim, a pergunta lógica que surge é: neste enquadramento de Estado Fiscal Social como deve ser aferida a legitimidade constitucional das normas tributárias, atendendo a que elas tanto podem orientar-se para a prossecução de finalidades fiscais como de finalidades extrafiscais [91]?

A este propósito, CASALTA NABAIS, seguindo de perto a doutrina alemã e espanhola, sugere uma divisão entre impostos fiscais (ou de índole predominantemente fiscal) e impostos extrafiscais (ou de natureza principalmente extrafiscal) [92]. Com base nessa separação [93], o referido professor conimbricense propõe o teste de legitimidade jurídico-constitucional das normas tributárias [94], segundo princípios constitucionais diferentes, consoante visam essencialmente finalidades fiscais ou principalmente finalidades extrafiscais.

Assim, enquanto as normas tributárias, que têm em vista um objectivo primordialmente fiscal, devem ser testadas pelo sistema jurídico-constitucional-fiscal, ou seja, pelos princípios clássicos do sistema fiscal, como sejam os princípios da legalidade e da capacidade contributiva; as normas com objectivo extrafiscal devem ser testadas pela teoria dos direitos fundamentais, maxime, quanto às restrições, pelos princípios da proporcionalidade e da adequação [95].

Note-se que, se as prestações tributárias com fins essencialmente fiscais não fazem parte do âmbito de protecção da norma que prevê o direito de propriedade privada, naturalmente a teoria jusfundamental revela-se inadequada para a aferição da legitimidade constitucional das normas tributárias que prevêem tais prestações [96].

Cumpre referir que, na doutrina alemã, esta distinção de regime se relaciona directamente com a conclusão a que chegaram os autores sobre o possível conflito entre o poder tributário e a protecção constitucional do direito de propriedade privada.

Se, tradicionalmente, se tem defendido a ausência de qualquer conexão entre o direito de propriedade privada e a tributação [97], hoje, a opinião dominante [98] é a que defende que apenas os impostos extrafiscais podem pôr em causa um tal direito [99], na medida em que os efeitos pretendidos pelo legislador, nestes casos, se assemelham aos da expropriação [100]. Já as ablações patrimoniais decorrentes dos impostos fiscais, como já referimos, não devem ser consideradas contempladas pelo âmbito de protecção do preceito constitucional que consagra o direito de propriedade privada [101].

Por fim, importa ainda acrescentar uma nota. Como tivemos ocasião de assinalar, qualquer imposto pode prosseguir um fim fiscal paralelamente a um fim extrafiscal. Ora, este facto implica que a referida divisão que mencionámos, para efeitos do teste de constitucionalidade das normas, não deva ser entendida em termos absolutos, mas apenas “essencial” ou “tipológico”, podendo a teoria jusfundamental ser convocada para aferir da constitucionalidade de uma norma essencialmente fiscal, na medida em que esta pode afectar os direitos e liberdades dos particulares, sobretudo de natureza económica, e os princípios da capacidade contributiva e da legalidade fiscal serem invocados como parâmetros para testar uma norma com finalidade extrafiscal, enquanto esta utilize ainda o instrumento fiscal para atingir determinados efeitos nos comportamentos dos cidadãos [102].


 
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