A evolução do conceito jurídico de imposto - do estado liberal de direito ao estado social de direito
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4. Posição da doutrina actual

Vejamos então a posição da doutrina actual sobre o conceito de imposto, percorrendo as posições dos vários autores dos países cujos ordenamentos se apresentam próximos do nosso. Diga-se, desde já, que os interessantes contributos das doutrinas, sobretudo alemã, italiana e também a espanhola, conduzem-nos a uma diferente abordagem da questão das finalidades fiscal e extrafiscal do imposto.


4.1. A citada concepção do fim extrafiscal secundário invertido tem acolhimento na actual definição legal de imposto, contida no § 3º, 1, da Abgabenordnung (AO), de 1977, da Alemanha, em que expressamente se dispõe que "a obtenção de receitas pode constituir um objectivo secundário".

A crítica mais significativa a esta teoria refere que, com o advento do Estado Social, o fenómeno tributário deve ser encarado como um fenómeno unitário [41] e os aspectos fiscal e extrafiscal não devem ser vistos de forma antagónica, mas formando um todo único [42]. Por outro lado, assinala-se que a referida teoria não acolhe cabalmente a figura dos benefícios fiscais (maxime as isenções fiscais) que, não visando a "obtenção de receitas", todavia, nem por isso, deixam de se consubstanciar fenómeno financeiro e, consequentemente, dentro do Direito Fiscal [43].

Além disso, a jurisprudência alemã para ultrapassar a referida definição legal de imposto passou a argumentar com base no seu efeito e não na sua finalidade, sublinhando que para ser considerado imposto bastava que o seu efeito secundário fosse dirigido à obtenção de receitas. Esta alteração significava a aceitação implícita de um conceito amplo de imposto, sendo dele afastado apenas os impostos sufocantes ou asfixiantes [44].

Estes factos concorreram para que a doutrina alemã chegasse à conclusão de que os fins extrafiscais previstos nas normas tributárias não contradiziam o conceito de imposto, devendo a legitimidade constitucional de tais normas ser testada, não através do seu conceito, mas pela sua (des)conformidade com os princípios constitucionais, designadamente com o princípio do Estado de direito (que se desdobra nos subprincípios da legalidade e segurança jurídica) e o sistema dos direitos fundamentais (os princípios da liberdade de iniciativa económica e do direito de propriedade privada) [45]. Ou seja, a discussão sobre a legitimidade das finalidades extrafiscais, inicialmente centrada na definição do imposto, deslocou-se para o plano constitucional. Passou a discutir-se a legitimidade das normas tributárias que prosseguiam aqueles fins ao nível dos princípios jurídico-constitucionais [46].


4.2. A doutrina italiana dominante mais recente [47], na esteira dos autores alemães, não só admite a existência de fins extrafiscais dos impostos, como salienta a necessidade de os mesmos estarem de acordo com os princípios constitucionais [48]. Ou seja, também para a doutrina italiana, a legitimidade das normas tributárias com finalidades extrafiscais deve ser testada a partir do texto constitucional e não mediante a verificação da sua (dis)concordância com o conceito de imposto [49][50].

Afirma-se que o imposto deve ser concebido como um instrumento nas mãos do poder público para a realização de fins de conformação económico, social e político, próprios do Estado Social, em ordem à instauração de uma maior igualdade material na sociedade. Refere-se que a Constituição italiana, ao incumbir aos poderes públicos a realização das citadas tarefas, impõe mesmo um dever constitucional [51] na utilização da fiscalidade como instrumento para a consecução daqueles fins. Nesta óptica, o legislador não só pode prosseguir as finalidades extrafiscais, como também as deve prosseguir. Daí que, também os autores italianos, chegaram à conclusão que a admissibilidade da extrafiscalidade não é um problema que tenha a ver com o conceito de imposto, mas antes com os princípios jurídico-constitucionais [52].


4.3. Paralelamente, quer a doutrina [53] quer a jurisprudência espanholas [54] aceitam os objectivos extrafiscais dos impostos. Factor que contribuiu decisivamente para este entendimento foi a definição do art.º 4º da Ley General Tributaria espanhola que dispõe expressamente que o tributo (que inclui o imposto), além de ser um meio para obter receitas públicas, pode servir como instrumento "de política económica geral, atender às exigências de estabilidade e de progresso sociais e procurar uma melhor distribuição do rendimento nacional" [55].

Por outro lado, a jurisprudência constitucional espanhola, vem afirmando expressamente que os preceitos constitucionais que estabelecem os princípios reitores da política económica e social fundamentam o fim extrafiscal de um tributo, não sendo necessário que este tenha por finalidade primordial a obtenção de receita [56].

No entanto, parte da doutrina espanhola chama a atenção para um aspecto que importa dar especial realce e que, de resto, segundo cremos, tem relevância no nosso ordenamento, em face das semelhanças entre o nosso sistema jurídico-constitucional fiscal e o sistema espanhol. Salienta a referida doutrina que um facto é constatar a idoneidade funcional do imposto como instituto jurídico-constitucional para a consecução dos fins económicos e sociais, constitucionalmente previstos, algo distinto é a "reconversão do instituto tributário numa prestação coactiva polivalente" para realizar todos os fins promocionais que incumbem ao poder público [57].

De onde resulta que existe um limite para o legislador na fixação do fim extrafiscal dos impostos. Este limite deriva do pressuposto que determina a prestação patrimonial (capacidade económica) e a função que com ela se pretende cumprir (contribuir para sustentar os gastos públicos) - art.º 31.º, n.º 1, da Constituição Espanhola, de 1978 [58]. Desta forma, o instituto jurídico constitucional do imposto há-de ter aquele pressuposto e ser orientado ainda para aquele fim, o que exige do legislador, no uso da sua liberdade de configuração do instituto, o respeito por este conteúdo mínimo, não significando que este último seja exclusivo ou excludente [59].

Por outras palavras: mesmo os impostos com finalidades extrafiscais, porque decorrem de princípios constitucionais diferentes dos impostos com finalidades principalmente fiscais, hão-de fundamentar-se ainda no princípio da capacidade contributiva, considerado este não tanto como "critério de contribuição" [60] para as despesas públicas, mas como "fonte, substracto ou exigência lógica de toda a imposição" [61], pois que, se o imposto é por definição uma ablação coactiva à riqueza, não se pode amputar onde riqueza não há. Ou seja, o respeito pelo princípio da capacidade contributiva, nos impostos com finalidades extrafiscais, traduz-se na imposição de uma prestação patrimonial, apenas, nos casos em que exista a manifestação de capacidade económica, o que constitui uma regra de lógica objectiva e de natureza intrínseca da realidade [62].

Com estas observações, os autores espanhóis sublinham a necessidade de os limites dos impostos extrafiscais se situarem também dentro das fronteiras constitucionais traçadas: respeitarem o mínimo de sobrevivência e não terem carácter confiscatório. Caso contrário seriam arbitrários e injustos [63].

Importa assinalar ainda que os fins extrafiscais, a serem prosseguidos através da via tributária, mesmo amparados em princípios constitucionais, não podem de todo anular ou substituir os fins fiscais, sob pena do instituto financeiro em causa deixar de ser "imposto", pois deixará de desempenhar a sua função de instrumento para a satisfação das necessidades financeiras públicas [64].

Sintetizando, também a doutrina e a jurisprudência espanholas reconhecem a idoneidade da figura do imposto para prosseguir finalidades extrafiscais. Contudo, evidenciam a necessidade de tais finalidades não poderem absorver totalmente os fins tradicionalmente atribuídos ao instituto e de respeitarem os parâmetros constitucionais estabelecidos para o dever geral de pagar imposto (ou de todos os cidadãos contribuírem para os gastos públicos) que assenta na manifestação de riqueza.


4.4. Ao nível da União Europeia, a prossecução de fins extrafiscais resulta bem explícita de diversas disposições do próprio Tratado da UE. Citam-se, a este propósito, as normas de protecção do mercado comunitário, designadamente as constantes do Cap. II (título I, 1ª parte) - "Disposições fiscais" - que visam prevenir as distorções da concorrência, nomeadamente causadas pelos diferentes regimes tributários adoptados pelos Estados-membros [65]. Daí que a harmonização fiscal comunitária se tenha tornado um dos instrumentos necessários para a consecução dos objectivos económicos estabelecidos a nível comunitário [66].

Além disso, toda a legislação comunitária relativa à determinação e cobrança dos direitos aduaneiros, as taxas anti-dumping e o regime dos benefícios estabelecidos para a exportação, consubstanciam-se também em medidas protectoras, tendo em vista garantir aos agentes económicos europeus o escoamento dos seus produtos.

Chegados a este ponto, parece-nos poder concluir que existe um dado inegável: com o advento do Estado Social de Direito, praticamente em todos os países de regime democrático europeu, o imposto tornou-se um instrumento de conformação económico-social.

Assim, quer se queira quer não mesmo a doutrina mais tradicional é obrigada a reconhecer a existência de outras finalidades, além da finalidade estritamente fiscal. Vejamos, a este propósito, a doutrina francesa e a portuguesa.


4.5. A doutrina francesa, mais inclinada para a concepção liberal do imposto [67], não obstante reconhecer o intervencionismo fiscal no plano económico e social, vê como primordial função daquele instituto a de satisfação das necessidades financeiras do Estado [68]. Existem autores que não hesitam em continuar a afirmar que o imposto é um "fardo" e as medidas intervencionistas estruturais "une véritable déformation permanente de l'activité économique" [69].

Deste modo, a questão da extrafiscalidade tem sido discutida mais ao nível da técnica e da ciência fiscal, devido essencialmente à ausência, em França, de uma justiça fiscal acessível ao cidadão [70].


4.6. Na doutrina portuguesa, a questão do elemento teleológico do imposto não tem tido o mesmo desenvolvimento que na Alemanha, na Itália ou em Espanha. De entre os factores que poderão ter contribuído para esta circunstância, pontua-se a ausência de uma jurisdição constitucional efectiva [71]. Por outro lado, diferentemente da Alemanha e da Espanha, a promulgação da Lei Geral Tributária [72] (LGT) não avançou com uma noção legal de imposto [73].

Assim, a posição mais tradicional continua a salientar que o fim primordial/imediato do imposto é o da satisfação das necessidades financeiras do Estado e, embora admita a prossecução de um outro fim paralelo (extrafiscal), não o reconhece, todavia, como elemento essencial do conceito ou como fim imediato do instituto [74].

Mais recentemente, a doutrina fiscal dominante tem utilizado expressões mais amplas para definir o referido conceito [75], de modo a abarcar, quer o fim fiscal quer o extrafiscal. Exemplos dessas expressões são, nomeadamente: o imposto é uma prestação patrimonial positiva que se destina à "satisfação de fins públicos..." ou "para o financiamento dos objectivos gerais do Estado" [76]. Não obstante, deve reconhecer-se que, subjacente ao emprego dessas expressões "fins públicos" ou "objectivos gerais", está mais a preocupação em distinguir a figura do imposto da de sanção que, como se sabe, tem em vista a recomposição de uma ruptura na ordem jurídica [77][78].

Na realidade, não existem impostos com fins exclusivamente fiscais e outros com fins unicamente extrafiscais, porque associada à finalidade fiscal (obtenção de receitas) encontra-se, muitas vezes, também, a finalidade de repartição equitativa dos encargos públicos, além de que qualquer prestação tributária tem sempre repercussões na vida económica [79]. Por outro lado, não está excluída a hipótese que a receita obtida dos impostos, com fins predominantemente extrafiscais, seja posteriormente aplicada para cobrir as despesas financeiras públicas. Daí que a doutrina afirme que finalidades fiscais e extrafiscais são incindíveis [80].


 
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