A evolução do conceito jurídico de imposto - do estado liberal de direito ao estado social de direito
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3. O conceito de imposto no Estado Social de Direito

A referida ordem natural, no entanto, não deixava de ser apenas um leitmotiv ideológico, motor que impulsionava a concorrência desenfreada, criando grandes contrastes sociais, como nos dá conta a abundante literatura da história político-económico-social dos séc. XVIII e XIX. Paulatinamente os interesses económicos da classe burguesa foram abrindo um profundo fosso social nos países ocidentais [21] e o aparelho estadual viu-se obrigado a intervir.

A intervenção do Estado na sociedade e na economia, mormente para corrigir os desequilíbrios provocados pelo capitalismo, exigiu a ampliação da máquina administrativa e, consequentemente, o aumento das despesas públicas. Assim, o imposto foi encarado pelos estadistas e pela doutrina jurídico-financeira como a via, por excelência, através da qual se podia dar satisfação às crescentes necessidades financeiras. Com a nova actividade estadual de conformação económico-social, o imposto, outrora considerado elemento neutro, passou a desempenhar uma nova função - a extrafiscal -, ou uma função paralela à que tradicionalmente lhe estava adstrita [22].

Mas esta nova concepção não se instalou na doutrina sem entraves. A verdade é que da finalidade unicamente fiscal do imposto se passou para uma teoria da finalidade principalmente fiscal, depois para uma concepção da finalidade paritariamente fiscal, para evoluir ainda para uma outra, de fim fiscal secundário e, ainda, de fim extrafiscal exclusivo. Essa evolução revela o entendimento que se foi tendo, ao longo dos tempos, acerca das incumbências do Estado que, por sua vez, dependiam das concepções sobre as múltiplas relações entre o poder estadual e a sociedade [23].

No entanto, refira-se que a função fiscal e extrafiscal sempre co-existiram na figura do imposto. Já os estados na Antiguidade utilizavam a tributação para a realização de fins extrafiscais. A este propósito, é de destacar, designadamente, o Reino de Ptolomeu do antigo Egipto [24], em que existiam cerca de 200 impostos com fins não fiscais [25].

Não vamos tratar pormenorizadamente da evolução das várias fases da função extrafiscal do imposto, afigurando-se-nos mais consentâneo com o nosso tema assinalar aqui apenas os contributos mais importantes da doutrina fiscal que marcaram essas várias etapas.


3.1. Foi WAGNER quem defendeu energicamente uma concepção "político social" do imposto [26]. Refiria na sua obra-prima: "...à côté du but immédiat, purement financier, de l' impôt, on peut également discerner et poser un second but, but de politique sociale, comportant intervention réglementative dans la répartition des revenus et de la fortune de la population, en général de la manière à produire une modification de la répartition qui s' opère dans le régime du trafic libre." [27]

Nesta nova concepção, o imposto constituía, não só um meio para a satisfação das necessidades financeiras públicas, mas também um instrumento para a repartição dos rendimentos e da riqueza; portanto, pari passu de uma finalidade fiscal, o imposto podia prosseguir uma finalidade extrafiscal. Para a teoria wagneriana, estas duas finalidades tinham o mesmo peso, situavam-se ao mesmo nível, significando que um imposto que se destinasse unicamente à realização de um fim político-social não perderia a sua qualidade de imposto [28].

A função "político-social" do imposto conjuntamente com a teoria da utilidade marginal dos rendimentos constituíram os principais suportes teóricos para a criação do imposto progressivo, em muitos Estados ocidentais, em substituição da tributação proporcional que favorecia principalmente a classe burguesa [29].

No entanto, aponta-se como principal vício da referida teoria o facto do seu autor ter-se baseado num pressuposto erróneo. WAGNER depois de ter declarado, na sua investigação, que iria considerar a ordem económica vigente, colocou como hipótese fundamental da sua tese a possibilidade de o estado transformar gradualmente a ordem liberal, da altura, numa ordem socialista, sem revolução. Ora, qualquer sistema tributário é modelado pelo ordenamento económico em que se insere, que, por sua vez, é moldado pela própria Lei Fundamental. Por isso, para PUGLIESE o erro da tese de WAGNER residia no facto de a sua investigação científica não ter partido de um "terreno sólido", assente num determinado sistema tributário que correspondesse às exigências de um determinado período histórico [30], mas num sistema futuro.

Por outro lado, realça-se que não só não se verificou a mutação da ordem económica existente, continuando a vigorar o sistema predominantemente capitalista nos estados sociais de direito, como tal teoria apenas teve influência na política interna da Alemanha, no período do Governo de Bismark (1870 - 1900), altura em que predominava a ideia da omnipotência do Estado e do "obséquio às leis" [31].

Resumindo, na ideia original de WAGNER o fim "político-social" do imposto correspondia à sua utilização como instrumento para alcançar uma melhor repartição dos rendimentos e de uma mais equitativa distribuição da riqueza, que é o mesmo que dizer para atingir uma maior igualdade material ou maior justiça social.

Mas se a escola do "socialismo catedrático", liderada pela teoria de WAGNER, representava um esforço de reconstrução teórica do conceito de imposto, mais consentâneo com a realidade e com um Estado que começou a preocupar-se com a sociedade, típico do "socialismo de Estado", como o foi o da Alemanha de Bismark, já na concepção socialista de Karl Marx, o imposto constituía um instrumento de revolução social que tenderia pouco a pouco suprimir a propriedade privada [32].

A concepção do fim político-social do imposto não atraiu poucas críticas e a verdade é que a maior parte da doutrina continuou a ser fiel à concepção tradicional liberal, recusando-lhe qualquer fim extrafiscal [33].


3.2. Expressão de compromisso entre a visão liberal clássica mais radical e a teoria do imposto com função "político-social", vem a ser a teoria do fim extrafiscal secundário, que teve suporte claro no Reichabgabenordnung (RAO) alemão, de 1919, nomeadamente na definição do imposto contida no seu § 1º, em que se referia que o imposto servia "para a obtenção de receitas" [34].

Nessa definição a finalidade principal do imposto era a da cobertura das despesas financeiras do Estado, mas não estava vedada a prossecução de qualquer outra finalidade extrafiscal, conquanto esta não fosse a principal. A teoria do fim extrafiscal secundário representou, assim, a concepção tradicional liberal do imposto, moderada agora com matizes sociais [35].

No entanto, a referida teoria prevaleceu na doutrina por algumas décadas, sensivelmente até aos anos trinta do séc. XX, devido, essencialmente, ao clima de receio que girava em torno das actividades intervencionistas do Estado.


3.3. Mas a partir do momento em que a actividade de conformação económico-social do Estado passou a adquirir uma certa constância e em que não se justificavam os receios da transformação num estado patrimonial, a teoria do fim extrafiscal secundário do imposto foi acantonada para dar espaço a uma nova construção. A finalidade extrafiscal do imposto passou a poder protagonizar uma função primordial, ao contrário do que sucedera na época anterior. Esta inversão conceptual da doutrina e da jurisprudência, sobretudo alemãs, foi influenciada fortemente pela teoria económica de J. KEYNES [36] e pela constatação, após a Grande Guerra, que o Estado passara a exercer normalmente uma actividade económica [37].

Verificou-se, assim, uma alteração substancial da actividade impositiva, quer em termos quantitativos, quer em termos qualitativos. No primeiro sentido, porque passando o Estado a realizar mais tarefas económicas e sociais, inelutavelmente passou a ter mais despesas, o que acarretou a necessidade de ter mais receitas para a sua cobertura, isto é, passaram a existir mais impostos. No segundo sentido, tornou-se claro que os impostos eram instrumentos idóneos para a prossecução de tarefas de conformação económico-social, constitucionalmente incumbidas ao Estado contemporâneo, assumindo cada vez mais relevo as finalidades extrafiscais da tributação [38].

Não obstante, é a partir dos anos 60, do séc. XX, que se verificou a consolidação dessas ideias, momento em que a doutrina fiscal alemã começou a sustentar que, para que um imposto fosse designado como tal, bastava que fosse também dirigido à obtenção de receitas [39]. Por outras palavras, o imposto passou a poder prosseguir uma finalidade primordialmente extrafiscal. É a designada teoria do fim extrafiscal secundário invertido [40].


 
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