A evolução do conceito jurídico de imposto - do estado liberal de direito ao estado social de direito |
2. O conceito de imposto no Estado Liberal de Direito
2.1. A ideologia liberal em que assentava os pilares da organização jurídico-política do Estado europeu dos séc. XVIII e XIX, conduziu a que o imposto fosse aceite, na altura, com forte relutância, quase como um mal inevitável.
A razão de fundo que originou um tal sentimento de rejeição derivou do facto de o mesmo constituir como um atentado contra o direito à propriedade privada, o qual era entendido como um direito absoluto, natural e inviolável, por isso, não se permitiam limitações, senão, as livremente consentidas pelos seus titulares [6].
Por outro lado, na medida em que o poder tributário provinha do Estado e as receitas se destinavam ao Estado que, à partida, não devia interferir nas esferas "sagradas" dos direitos e liberdades individuais, aumentava o sentimento de aversão por parte dos cidadãos, sobretudo da burguesia.
Vale a pena ver, em termos necessariamente muito sumários, como a própria doutrina da altura concebia a figura do imposto.
ADAM SMITH referia que os impostos eram todos "mais ou menos antieconómicos que aumentam o rendimento do soberano" [7].
Mais tarde, autores, como OTTO MAYER [8], qualificaram o dever de pagar imposto como "une formule dénuée de sens et de valeur juridique" e o poder financeiro do Estado foi equiparado ao poder de polícia; porém, enquanto este se fundamentava no direito natural, aquele não passava de uma força de domínio [9].
FERREIRA BORGES sublinhava que "é por tanto o tributo um desfalque da riqueza de cada um para alcançar os bens, que resultão à sociedade da observância da lei, isto é, a segurança do domínio e da liberdade. É um sacrifício; mas é preço da segurança. Se é um mal, é um mal necessário para obter um bem evidente e essencial à sociedade" [10].
Se esta era a concepção que predominava, ela não deixava de reflectir as estruturas económico-sociais da época. É que toda a fiscalidade, na realidade, era estruturada de acordo com os interesses da classe burguesa, estimulando a sua avidez para a acumulação e para o investimento [11].
Não obstante, ainda antes da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), DOMAT afirmava, de forma precursora, que o "imposto é uma obrigação legítima dos sujeitos do reino, que estes devem contribuir às despesas públicas...". Este entendimento constitui o gérmen da moderna teoria do imposto, que passou a concebê-lo não como um encargo, mas como uma obrigação destinada à satisfação das despesas públicas. Daí a passagem da fórmula "imposto = encargo" para "imposto = despesas" [12].
2.2. É esta a concepção que vem caracterizar, posteriormente, a doutrina jurídico-tributária da fase tardia do século XIX até aos inícios do século XX [13]. De um modo geral, os autores de Direito Fiscal [14] sublinhavam que o imposto constituía uma obrigação dos súbditos de participar nos encargos financeiros do Estado, o imposto servia para fazer face às despesas financeiras públicas.
BLUMENSTEIN e GRIZIOTTI foram os autores que, mais tarde, contribuíram decisivamente para este entendimento, ao considerarem, como fundamento do imposto, o elemento objectivo ou substantivo, isto é, a cobertura das necessidades financeiras do Estado. E é este mesmo elemento substantivo que constitui também a justificação do poder tributário [15].
Fortemente influenciado ainda pelas ideias liberais, tal conceito de imposto encontrava-se em estreita conexão com a concepção que se tinha das políticas financeiras da época. As finanças públicas deviam ser neutras, não prosseguindo nenhum outro fim senão o da satisfação das despesas públicas [16]. Daí que, também o imposto servisse apenas para sustentar tais despesas, que deviam ser mínimas, porque o Estado não devia interferir, ou devia interferir o menos possível na vida económica e social [17]. Esta concepção, desenvolvida por impulso dos ideais liberais, assentava num pressuposto: o equilíbrio económico, recorde-se, provinha da ordem económica em si mesma, da "mão invisível" existente no mercado. Por isso, ao Estado não se exigia outra tarefa senão a de se abster de intervir em tal ordem [18][19].
Temos, então, que a figura do imposto, até inícios do séc. XX, fora concebida com uma única função, a fiscal. Ele constituía um meio para obter receitas que deviam limitar-se ao mínimo possível, as necessárias para suportar as despesas do Estado que se resumiam, essencialmente, em gastos relacionados com as tarefas políticas. A neutralidade do imposto relativamente à vida económica e social era, aliás, muito bem expressa na célebre regra de Edimburgo - "leave them as you find them".
Quatro características se podem atribuir ao conceito de imposto segundo a teoria liberal: ser mínimo, geral, proporcional e exclusivamente fiscal. Só assim ele respeitaria a ordem natural e seria legítimo [20].