Os movimentos de reforma e a "accountability"
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“Where everyman is participator in the government of affairs, nor merely at an election one day in the year but everyday, he will let the heart be torn out of his body sooner than his power be wrested from him by a Caesar or a Bonaparte.”
“I know of no safe repository of the ultimate power of the society but the people themselves; and if we think them not enlightened enough to exercise control with a wholesome discretion, the remedy is not to take it from them, but to inform their discretion by education.”
Thomas Jefferson (1743 - 1826)

1. Introdução

O Estado-Providência é hoje apresentado como um obstáculo ao crescimento e à competitividade, incentivando-se a adopção das práticas do mercado. Privatização, liberalização, desregulação, descentralização e várias “inovações” associadas ao paradigma da nova gestão pública [1], têm dominado o discurso mais recente das reformas da Administração Pública. As causas para tão grande interesse pelos novos modelos gestionários poderão ser resumidas da seguinte forma [2]:

a) Crise financeira e insucesso do Estado – a elevada carga fiscal, a acumulação de défices orçamentais, a estagnação do crescimento económico e a incapacidade de responder às elevadas expectativas criadas nos cidadãos quanto às capacidades do Estado (qualidade dos serviços e do atendimento, situações específicas originando novas funções de regulação e de administração) assim como quanto à satisfação dos direitos dos cidadãos, preocupados, agora, com a participação na esfera da administração;

b) Baixos níveis de confiança dos cidadãos a par de sociedades mais ambiciosas – os cidadãos não confiam nos poderes públicos mas simultaneamente pedem mais apoios a esses mesmos poderes;

c) Prestação de contas política – tensão entre, por um lado, as novas formas de coordenação política e os tradicionais instrumentos de prestação de contas por outro;

d) Distanciamento e isolamento institucional – aumento do distanciamento entre o sistema de governação e os cidadãos, gerando, em democracia, frustração nos cidadãos que querem ser ouvidos nas suas reivindicações e os decisores políticos que não usam esta informação;

e) Globalização e novas fontes de governação – usada para justificar as imposições internacionais à soberania nacional, sejam políticas ou económicas, impostas pelo Estado ou pelo mercado. Os estados são forçados a competir por investimentos privados dando incentivos fiscais, diminuindo as receitas fiscais e diminuindo os seus custos, ao mesmo tempo que surgem ou se reforçam novas formas de governação internacionais, como a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional ou a Organização Mundial do Comércio, a par do reforço dos governos locais;

f) Mudança ideológica a favor do mercado – mudança de uma cultura das políticas para uma cultura do individualismo e do mercado, obrigando o Estado a redefinir o seu papel para manter um papel efectivo. Rejeita-se uma cultura específica para as organizações públicas e defende-se a adopção generalizada dos instrumentos do mercado.

A necessidade de reformas no país, não apenas no Estado mas nos seus diferentes actores, empresas, ONG, etc., surge evidente quando analisamos alguns indicadores de desenvolvimento como sejam o facto de Portugal ter o PIB per capita mais baixo da União Europeia a 15 (UE15) em paridade de poder de compra (Portugal: 69,2%; Espanha: 87,4%; Grécia: 73,5%), a produtividade mais baixa da UE15 (UE15: 100%; Portugal: 63,8%; Espanha: 95,8%; Grécia: 91,9%), 20% da população considerada pobre (após transferências sociais), população entre os 20 e os 24 anos que terminaram o ensino secundário 47,2% contra 74% da UE15 (objectivo da UE em 2010 é de 85%), investimento em I&D em percentagem do PIB em 2001 era de 0,84% contra 1,98% da UE15 (objectivo da UE em 2010 é de 3%).

Ao nível internacional, neste princípio do século XXI, os diversos países estão a sair de um quadro de Estado-Providência que foi o dominante no século precedente e que assentava na conjugação de um mito, o da excelência e infalibilidade do Estado, e de uma prática, o Estado tomar a cargo o desenvolvimento económico e social. Ora, o Estado não parece mais capaz de responder a todas as necessidades, de fazer face a todos os problemas.

Não obstante, para uns a solução dos problemas está no Estado-Providência, afirmando que os problemas podem, devem e têm que ser resolvidos pelo Estado, em nome dos princípios democráticos, enquanto outros evocam as disfunções do Estado, a sua incompetência, e apontam o mercado como solução. Os críticos desta visão recordam o que a história já provou, ou seja, que o carácter público dos mercados acaba sempre por ser revelado quando chegam os problemas. Ainda outros, defendem que a solução pode ser encontrada na acção de um novo e distinto sector social, o terceiro sector, constituído por organizações que além da execução das tarefas sociais representam ainda criação de cidadania.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que tanto se fala em privatização, em economia de mercado, as pessoas recorrem cada vez mais ao Estado, exigindo novos serviços públicos, seja em resultado das novas tecnologias, seja pelo alargamento das áreas de intervenção do Estado (vg. área ambiental). Por forma a efectivar esta relação de troca o Estado necessita de estruturas administrativas para executar as políticas públicas, procurando cumprir o contrato estabelecido. Ora, com o aumento das exigências por parte dos cidadãos, por razões diversas, que vão desde razões políticas à evolução tecnológica, a “máquina” tende a aumentar, diminuindo a sua performance, passando quase a viver para se auto-sustentar, desvirtuando, assim, a sua função de responder às necessidades dos cidadãos.

No mesmo sentido, os cidadãos exigem da administração pública certos padrões de serviço que raramente exigem ao sector privado, esquecendo-se que a eventual crise do modelo de Estado-Providência resulta, em boa medida, da expansão dos seus direitos de cidadania e das políticas daí resultantes. Esta tensão entre expectativa e performance, muitas vezes exacerbada pelas promessas eleitorais, conduz depois à frustração com a governação. Adicionalmente, encorajam os cidadãos a perguntar “Quanto custa o Estado?”, omitindo-se a pergunta “Quanto vale o Estado?”. Em resposta, os governantes cortam nas despesas, reduzindo ou eliminado programas ou serviços, proclamando que têm reformas em curso a caminho da modernização.

Destaca-se, assim, a importância da prestação de contas (accountability, imputabilité). A questão da accountability ganha contornos ligados à representação, à legitimidade do poder, e, consequentemente, conduz-nos à teoria democrática e aos valores que guiam um governo democrático, transformando a accountability numa questão da democracia. A preservação dos direitos democráticos requer necessariamente a expansão dos limites da arena em que se exerce o controlo e, em termos ideais, esse controlo constitui prerrogativa essencial dos cidadãos organizados pois uma sociedade desmobilizada não é capaz de garantir a accountability.

É pois importante actuar sobre a avaliação dos resultados por forma a fechar o ciclo da prestação de contas, a qual pressupõe conhecimento, ou seja, prestar contas vai para além de “dar contas”, tem por base o “dar-se conta”, ali onde a gestão pública e a opinião pública se encontram. O problema é que de um modo geral, os cidadãos não possuem informação sobre os resultados, com prejuízo evidente sobre o “dar-se conta”.

A lufada de ar fresco introduzida numa Administração voltada para si própria e esquecida dos cidadãos, funcionando numa lógica de mero cumprimento de regras e sem preocupação com os custos e resultados, é certamente bem vinda. Porém, convirá ter presente que enquanto o sector público actua com uma racionalidade que transcende o seu fim, nas organizações empresariais, pelo contrário, a racionalidade está no seu próprio fim, são organizações introvertidas e baseadas nos seus interesses próprios, legítimos, certamente, mas que não transcendem o seu próprio âmbito. Os bloqueios provocados pela “máquina” estatal, sendo certo que, não raras vezes, resultam de uma estratégia de reprodução de privilégios e do poder de uma certa classe administrativa, não deixam de ser, sobretudo, resultado de um contínuo reforço dos direitos de cidadania, o qual exige, naturalmente, um quadro normativo e organizacional em conformidade.


 
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