Os movimentos de reforma e a "accountability" |
2. Um novo Estado – uma nova governação
2.1. A transformação do Estado rumo a uma nova governação
Houve um tempo em que o Estado era visto como um veículo para a mudança social, igualdade e desenvolvimento económico, para além do seu papel na prevenção de problemas, de doenças, de incêndios, de inspecção de alimentos para prevenir doenças, etc.. O aumento da prestação de serviços foi desviando a atenção do esforço do Estado da prevenção para a resolução de problemas, aumentando a “máquina”. Actualmente, porém, o Estado já não é, para alguns, apontado como a solução mas sim como a causa dos problemas da sociedade.
Em Portugal, assiste-se à multiplicação de empresas, institutos, fundações e outras estruturas públicas, com frequentes sobreposições de competências entre as diversas estruturas, sem que se tenha ainda definido o que deve permanecer no Estado e o que pode e deve ser entregue à iniciativa privada ou partilhado com esta. A reduzida atenção à qualidade, pelo Estado e pelo mercado, aliada ao facto de Portugal ser ainda um país com consumidores pouco exigentes, penaliza igualmente a produtividade e a competitividade, e não ajuda a aguçar o “engenho e arte” dos portugueses.
Face a este quadro, na linha, aliás, do que se passa nas economias desenvolvidas, de forma mais ou menos intensa e de acordo com padrões temporais diferenciados, os movimentos reformistas foram sendo iniciados um pouco por toda a parte [3].
De forma simplificada, diremos que o modo de encarar o papel do Estado tem sofrido alterações significativas nos últimos anos face à visão tradicional do Estado caracterizada da seguinte forma (Peters, 2000):
a) Estado no centro – o grau de intervenção do Estado nos mercados altera a estrutura da posse da indústria, redistribui riqueza entre diferentes actores sociais, expandindo ou restringindo os seus serviços como uma questão de opção política;
b) Isolamento e homogeneidade institucional – o Estado é um conjunto de instituições poderosas que podem ser usadas para reforçar a vontade política dos eleitores;
c) Superioridade e soberania do Estado – o Estado é visto como soberano, ou seja, os seus poderes e capacidades são absolutos em vez de relativos, contextuais e negociáveis. O Estado tem muitas interacções com a sociedade que o rodeia mas conduz essas interacções segundo as suas regras.
A transformação do Estado, ou a sua adaptação porque intencional, implica a transição de um Estado que produz para um Estado dinamizador, moldado por 4 objectivos fundamentais:
a) Nova repartição das responsabilidades entre o Estado e a sociedade – implica que há muitas responsabilidades, até agora entendidas como públicas, que não têm de ser necessariamente asseguradas pelos próprios instrumentos do Estado;
b) Parceria de responsabilidades dos cidadãos – envolvimento dos cidadãos é reforçado e a transparência da administração melhorada;
c) Diversos níveis de governação têm de cooperar mais estreitamente – por exemplo, o nível administrativo municipal tem de obedecer aos princípio da subsidiariedade, reforçando-se a auto-responsabilidade do nível administrativo mais baixo;
d) Renovação das estruturas administrativas internas – eficiência é o objectivo.
Actualmente, a visão do Estado reflecte as interacções entre o público e o privado, o contexto e o estilo de governação. O Estado é um entre outros actores, e a sua força reside na capacidade de obter apoios para as suas causas, mais do que na sua imposição. A visão centralizada e monolítica do Estado é substituída por um modelo de Estado que assume muito maior fragmentação institucional e incoerência, talvez mesmo contradição e tensão, entre e dentro das próprias instituições.
As raízes das mais recentes soluções para os problemas das organizações públicas podem ser encontradas nas soluções desenvolvidas para resolver os problemas da indústria dos finais do séc. XIX e início do séc. XX, por exemplo, nos princípios da administração científica do trabalho, Frederick Taylor teve um profundo efeito na gestão e consequentemente na gestão pública. A sua noção de que usando princípios científicos as tarefas poderiam ser divididas em partes menores, mais simples, fornece a base teórica para o “one best way” dos trabalhadores executarem o seu trabalho. Poucos anos mais tarde, o sociólogo alemão Max Weber elaborou um estudo para identificar as características da burocracia organizacional. Weber via a burocracia como muito positiva para a sociedade uma vez que esta tinha a sua autoridade baseada na lei e em formas racionais em vez de no poder monárquico ou no carisma de um líder. Estes princípios enfatizavam processos eficientes dentro de uma estrutura bem definida onde os gestores deveriam atingir os objectivos da organização.
A palavra burocracia significava então algo positivo, conotado com método de organização racional, eficiente, algo que substituía o exercício arbitrário do poder dos antigos regimes. Com a sua autoridade hierárquica e especialização funcional, tornava-se possível a realização de tarefas grandes e complexas de forma eficiente. Uma das maiores forças do paradigma burocrático é o facto de ser baseado na lei para assegurar a prestação de contas (Moe, 1987). No paradigma burocrático as regras asseguram que as acções são justas para todos e mantêm a fiabilidade e estabilidade dos procedimentos da organização. Um princípio geral de governação é que quem tem poder deve prestar contas em última análise aos cidadãos pela legalidade, moralidade, profissionalismo, correcção política, soluções seguidas, decisões tomadas e atitudes expressas. Mas o modelo burocrático foi desenvolvido numa época em que só aqueles no topo da pirâmide tinham informação suficiente para tomar decisões informadas. Hoje, vivemos numa era de mudança, num mercado global com enorme pressão competitiva, numa sociedade da informação, numa economia fortemente baseada no conhecimento, com os funcionários a exigirem autonomia, com os cidadãos habituados a ter múltiplas opções de escolha. A ênfase actual é na pequena escala, na flexibilidade, na diversificação, na partilha de poderes entre o Estado e o mercado. O Estado hierárquico é demasiado grande para resolver pequenos problemas e demasiado pequeno para resolver grandes problemas.
Os detractores da burocracia referem que os cidadãos encontram muitas vezes a burocracia como o procedimento acima do interesse público [4]. Os burocratas são premiados pelo crescimento do orçamento e do pessoal necessário para gerir os recursos crescentes: quanto maior o orçamento e o número de funcionários maior o prémio. Assim, os interesses do burocrata sobrepõem-se aos interesses da organização e como os burocratas possuem a informação relevante nem mesmo o poder legislativo os controla. Por outro lado, a burocracia apenas permitirá a promoção aos mais capazes de cumprir ordens e regulamentos, tendo os funcionários públicos pouco incentivo à eficiência.
A introdução da lógica da nova gestão pública na administração pública, tem por pressuposto a superioridade dos mecanismos de mercado em relação ao paradigma burocrático, prescrevendo a redução do peso do sector público, a flexibilização do regime de trabalho, a desregulamentação, a delegação e devolução de poderes, sendo apresentada num contexto de constrangimentos orçamentais e de revalorização das perspectivas do empreendedorismo. A nova gestão pública desvaloriza a ideia de uma cultura específica para as organizações públicas e defende que estas devem ser geridas da mesma forma que as empresas privadas, utilizando os mecanismos de mercado [5]. Defensores como Osborne e Gaebler (1992) [6], Dilulio (1993) ou Barzelay (1992) referem que a inércia e rigidez que tradicionalmente caracterizam o sector público são largamente imputáveis às alegadas especificidades do sector público. As principais características desta nova gestão pública poderão resumir-se da seguinte forma:
a) Orientação para a
qualidade dos serviços oferecidos aos clientes;
b) Esforços para reduzir os
custos e, em particular, assegurar a transparência dos custos de produção;
c) Diferenciação do
financiamento, da aquisição e da produção de serviços;
d) Aceitação da independência
organizacional de unidades administrativas (muitas vezes no quadro de acordos
sobre os serviços e de envelopes orçamentais);
e) Descentralização das
responsabilidades de direcção (separação das decisões estratégicas das
operacionais);
f) Introdução da
avaliação do desempenho e dos resultados (vg. “benchmarking”,
indicadores);
g) Integração de princípios de
concorrência (vg. “contracting out”);
h) Flexibilização do emprego
público.
A governação tradicional usa os princípios burocráticos clássicos procurando uma organização orientada para a neutralidade, competência profissional, equidade e justiça social, criada e mantida com vista a assegurar a prestação de contas aos eleitos e a boa gestão dos bens públicos. A governação empreendedora, voltada para o mercado, encontra as suas raízes nos teóricos da gestão empresarial que promovem a resposta ao consumidor, encorajando a assunção de riscos desde que a qualidade do serviço ou as relações com os clientes seja melhorada. O gestor público actual vê-se assim confrontado com a necessidade de reunir os 2 modelos num só pois a tal exigem os cidadãos, clientes, contribuintes, consoante o papel em que se encontram. Enquanto clientes querem o melhor serviço, enquanto contribuintes querem pagar o menos possível, e enquanto cidadãos querem que alguém garanta os seus direitos básicos de segurança, de opinião, etc.
Em síntese, uma análise da base teórica da nova corrente reformista permite-nos retirar as seguintes conclusões:
a) Visa fazer alterações significativas na governação – promove-se a ideia de que o governo se reinventa a si próprio pela aplicação de certos princípios significativamente diferentes dos princípios tradicionais da governação. Revoluciona-se o actual sistema orçamental e de pessoal, redefinem-se as relações com os cidadãos e reforça-se o uso do modelo de mercado;
b) Certos princípios já não são novos – Frederickson (1996) identifica alguns movimentos reformistas como “old wine in new bottle”, para dizer que as práticas agora apresentadas já são utilizadas e resultam de uma súmula de anteriores pensadores;
c) Os princípios são muitos mas pouco profundos – apresentam-se muitos exemplos concretos da aplicação dos princípios mas poucas referências são feitas ao modo como implementar as mudanças. Deixa-se ao gestor a escolha da melhor forma de aplicação dos princípios gerais deixando-o com falta de orientação teórica e empírica;
d) Afirmar (apoio aos princípios) e fazer (pô-los em prática) são coisas diferentes – todos apoiam as mudanças na governação mas poucos põem em prática os procedimentos necessários devido às eventuais consequências políticas de maus resultados;
e) O orçamento desempenha um papel decisivo nas reformas – quando se pergunta aos governantes se estão de acordo com os princípios da reforma é fácil obter respostas afirmativas porém quando se procura nos seus orçamentos pelas verbas para programas de formação de funcionários em atendimento ou em acções de formação em cidadania dificilmente se encontram;
f) Os princípios da reforma contêm ideias populares sobre a governação – qual dos contribuintes, ou mesmo dos governantes, não pretende ter governos competitivos, eficazes e empreendedores? Contudo, os governantes são responsáveis por fornecer serviços de forma equitativa e justa a todos os cidadãos (mesmo os que não pagam impostos), por garantir que existem controlos adequados do uso dos recursos públicos e que as relações com fornecedores são adequadas. Estes princípios exigem a adesão aos princípios tradicionais da governação.
A gestão pública deve ser palco de experimentação, de iniciativa, de criatividade, mas exige-se conhecimento científico, com ligação às universidades, e conhecimento empírico local, resultante do contacto com as populações. Pior do que as experiências não darem resultados positivos é não identificarmos os resultados negativos nem retirarmos as respectivas consequências desse processo natural de aprendizagem.
Por outro lado, o acto de gerir serviços públicos significa administrar num dado contexto político e dirigir esforços e competências de forma a maximizar o interesse colectivo, pelo que se exige uma liderança multifacetada, diferente do estilo privado, onde se inclui:
a) Habilidade para manter diálogos – entre as interpretações divergentes de valores e equilibrar as tensões inerentes entre os diversos contextos políticos;
b) Conservadorismo – que requer a articulação de um sentido de preservação da instituição e performance;
c) Moderação – da influência da opinião pública para preservar os valores de longo prazo, assim como os de curto prazo, do interesse público;
d) Protecção dos direitos fundamentais – e manutenção do primado do direito;
e) Educador e facilitador – do papel dos cidadãos no processo governativo democrático;
f) Enriquecedor – o que envolve confrontar os cidadãos com as escolhas possíveis.
Finalmente, sabe-se que os mercados nem sempre são eficientes devido à existência de:
a) Externalidades – custos e benefícios não expressos no valor de mercado dos bens, como por exemplo, os produtos não reflectirem no preço os custos da poluição gerada (externalidade negativa), ou as descobertas científicas usadas por todos sem terem os custos da investigação (externalidade positiva), proporcionando uma discrepância entre os custos/benefícios individuais e sociais;
b) Monopólios naturais [7] – em que os novos concorrentes, devido aos elevados custos de instalação em mercados com reduzidos custos marginais, são facilmente anulados pelos concorrentes já instalados (ex.: telecomunicações, energia). O Estado é então forçado a produzir directamente o bem através da nacionalização do monopólio, ou a entregar a sua exploração à iniciativa privada, mas tendo de regulamentar essa actividade, financiar a exploração (se a empresa laborar ao preço marginal) e controlar a rentabilidade da empresa através de agências reguladoras;
c) Bens públicos – que são bens que se caracterizam pela sua não rivalidade e não exclusão do seu uso, ou seja, que uma vez produzidos todos os podem usufruir sem quaisquer custos, desincentivando, portanto, o investimento, e que se podem classificar da seguinte forma:
d) Concorrência destrutiva no mercado – leva à eliminação injustificada da concorrência e, a prazo, à destruição de todo o sistema de oferta, gerando um monopólio. A prática de preços predatórios, visando exclusivamente a eliminação dos concorrentes é inaceitável em termos de eficiência alocativa;
e) Subsidiação cruzada – quando algumas empresas utilizam o resultado que acumulam num determinado sector para financiar políticas destrutivas da concorrência noutro sector, torna-se necessária a regulamentação das regras de conduta no sector;
f) Mercados imperfeitos – constitui em si uma falha de mercado mas que não decorre da natureza do bem, como acontecia nos bens públicos, mas da existência de incerteza no mercado de bens, em que é impossível ao sector privado efectuar a cobertura do risco de investimento;
g) Informação imperfeita – a informação é de quem a detém e não é igual para todos;
h) Custos de transacção – custos da informação, elaboração e controlo dos contratos inerentes às transacções.
Temos, assim, um largo leque de mercados, com diversas características. Alguns necessitam de pouca regulação, outros de muita, tanto para o mercado funcionar como para resolver problemas que o mercado não consegue. Alguém tem que tomar essas decisões, ou seja, a existência de regras exige quem as defina, e numa democracia, essa “empresa” pertence, naturalmente, aos representantes dos cidadãos, i.e., os políticos democraticamente eleitos.