Os movimentos de reforma e a "accountability"
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2.3. Experiências de reforma no contexto Europeu

Os métodos utilizados nas reformas dos Estados europeus foram largamente difundidos e promovidos desde o início dos anos oitenta pelas organizações internacionais, como a OCDE. As comparações que se podem fazer das reformas nos Estados europeus mostram que uma mudança em profundidade engloba quer o peso da máquina estatal quer as suas funções. Começaremos por analisar o contexto das reformas, traduzido nas razões que as fundamentam, bem como os domínios em que elas ocorrem.

As razões para as reformas, como vimos anteriormente, são diversas, e de forma mais concreta, vão da orientação ideológica liberal do governo no Reino Unido, a luta contra as máfias e a corrupção em Itália e na Grécia, ao reforço de uma administração democrática em Espanha, à transformação territorial na Bélgica (mudança para federação) e na Alemanha (confrontada com os défices da reunificação) ou à modernização do aparelho administrativo central em França.

Naturalmente, as reformas seguiram ritmos desiguais segundo as necessidades políticas do momento. Em Espanha, os amplos programas de gestão pública lançados pelos governos socialistas de 1986 e de 1991 foram seguidos de medidas mais modestas procurando racionalizar o aparelho do Estado. Em França, as alternâncias governativas influenciaram significativamente o conteúdo das políticas de modernização sucessivas: ao programa de privatizações e à ideologia gestionária sucederam-se políticas de refundação do serviço público tendo-se regressado de novo às reformas de inspiração neoliberal.

Para além de ritmos desiguais, existem igualmente diferenças entre as políticas, desde as “anti-estado” dos governos inglês ou italiano, com mais de uma dezena de anos, às políticas mais suaves do governo alemão, onde a reforma é ainda dominada pela necessidade de ajudar os cinco novos Lander a disporem de uma administração mais eficaz e a desburocratizar os serviços administrativos, tendo a estrutura federal do país retirado o carácter inovador de medidas de delegação ou de desconcentração tão em voga noutros países da UE.

Apesar das diferenças, podemos encontrar princípios comuns nas reformas europeias, ainda que executados de forma diferente. O primeiro diz respeito ao controlo dos défices públicos. As limitações financeiras impostas pelos critérios de convergência para a realização da moeda única, o desenvolvimento do capitalismo financeiro, o financiamento de regimes de aposentação ou o serviço da dívida pública limitaram consideravelmente as margens de manobra nacionais e aproximaram as reformas. Outra semelhança deriva do facto de as reformas partirem do interior do próprio aparelho do Estado, com excepção talvez de Itália onde diversas manifestações populares denunciaram a incapacidade da classe política. Por outro lado, a generalidade das reformas na Europa foi construída na base de um certo número de axiomas, como seja, o facto de os utentes passarem a ser clientes que zelam pelo seu dinheiro, os serviços públicos passarem a obedecer às regras da concorrência para serem mais eficazes e eficientes, as soluções oferecidas pelo mercado serem menos onerosas, existirem soluções de tipo científico (avaliação de pessoas e de políticas públicas) que permitem reforçar o controlo democrático e assegurar a qualidade da acção pública, as técnicas contratuais permitirem maior flexibilidade do Estado. Finalmente, as políticas dos anos sessenta (grandes programas, racionalidade de grandes centros de cálculo informático) cederam lugar, um pouco por toda à parte, à modernidade da nova revolução industrial (programas negociados, delegações em cascata, conhecimento de peritos e de autoridades independentes, racionalidade da micro-informática em rede).

Quanto aos domínios das reformas, eles encontram igualmente terrenos comuns e podemos dividi-los da seguinte forma: a função pública e as estruturas institucionais.

Quanto ao primeiro, prioritário, a função pública, o objectivo é reduzir efectivos, apesar de só o Reino Unido ter conseguido baixar de facto o número de funcionários. Face às dificuldades, privilegiaram-se as transformações internas no sentido de uma maior individualização das carreiras. No Reino Unido esta individualização implicou, desde 1995, que todos os altos funcionários passassem a definir a natureza das suas funções e os objectivos a cumprir. Em Espanha a reforma de carreiras implicou a redução dos corpos da função pública para reforçar os contratos de trabalho individuais e também facilitar a mobilidade de pessoal em função das tarefas a realizar e não das nomenclaturas jurídicas. Uma outra reforma de fundo, que tocou todos os países da Europa, com excepção da Grécia, tem a ver com a aproximação dos regimes da função pública e dos regimes de direito de trabalho comum, quer se trate das condições de trabalho ou da negociação colectiva, como em Itália, da generalização do recurso à contratação em detrimento das funções de autoridade, como na Dinamarca, ou de harmonização dos regimes de aposentação, como em França.

Quanto às estruturas institucionais, o princípio é separar a concepção das políticas públicas da sua execução. Esta corrente foi plenamente desenvolvida no Reino Unido com a criação de agências operacionais que totalizam cerca de 5% de toda a função pública britânica. Mas as suas principais características encontram-se igualmente em países como a França, onde o interesse pela desconcentração fez prevalecer uma nova divisão do trabalho administrativo focalizando os ministérios em funções de pilotagem estratégica.

A vaga de privatização de empresas públicas insere-se igualmente nesta perspectiva, envolvendo o tecido social nos novos sistemas de governação. O recurso a técnicas contratuais, como contratos de plano ou contratos por objectivos com a definição do horizonte estratégico dos serviços, contribuem para a redução dos tempos de resposta e para a integração do número crescente de actores que se interessam pelas políticas públicas. A multiplicação de grupos de pressão, quer sejam públicos quer privados, a extensão das decisões tomadas em Bruxelas ou num município, abrem o campo de possibilidades e de compromissos e apela a novas soluções normativas, flexibilizando os tradicionais mecanismos da decisão política.

Se pensamos poder dizer-se que não existe um modelo europeu em matéria de reforma do Estado, encontramos no entanto preocupações comuns tais como a melhoria da qualidade dos serviços prestados, a redução da carga fiscal ou a integração dos serviços públicos na apreciação da competitividade global de um Estado, isto apesar de ser evidente que a grande diversidade de situações de partida, de objectivos prosseguidos ou de resultados obtidos. Não obstante, parece ser possível distinguir em termos de reforma três categorias de países.

A primeira categoria é constituída pelos países da Europa do Sul, que ao longo do anos noventa iniciaram a reforma do Estado visando lutar contra a imagem negativa dos serviços públicos e seus agentes, desenvolver o Estado de direito e aderir à União Económica e Monetária.

O Reino Unido forma sozinho uma segunda categoria, tendo desenvolvido claramente uma reforma de cariz político e ideológico, visando aproximar a administração pública do sector privado através da New Public Management. As reformas levadas a cabo pelos governos de Thatcher e depois por Major é traduzida por importantes privatizações, pelo recurso a métodos contratuais, por concorrência com o sector privado, pela redução do número de efectivos públicos, etc. Convirá referir que o governo de Tony Blair não rejeitou esta política, reformando ainda alguns aspectos mais controversos ou mais difíceis de executar como a instauração de quase-mercados no domínio da saúde. Países como a Irlanda, ou noutro contexto, a Austrália e a Nova Zelândia, adoptaram o mesmo caminho, sendo evidente nestas últimas colónias britânicas um certo extremismo na sua aplicação, evidenciando uma certa contradição entre a ambição de melhorar as perfomances da administração e a forte redução de despesas públicas.

A terceira categoria junta os outros países que abordaram a questão da reforma do Estado de maneira mais fragmentada. Alguns deles, como a Suécia ou a Holanda, importaram os métodos britânicos de gestão da função pública, mas adaptando-os ao seu modelo nacional, quer ao Estado-Providência quer à autonomia de gestão das comunidades locais. Em países como a Holanda ou a Dinamarca, onde o regime do funcionalismo público era já próximo do sector privado, a reforma foi facilitada face, por exemplo, ao sistema de carreira existente em França ou em Portugal, evidenciando, portanto, a importância do contexto cultural e institucional, no processo de reforma, em particular nas relações existentes entre o poder político e a função pública. Em França, na Alemanha, na Áustria ou mesmo em Espanha, a alta função pública é fortemente politizada, diferentemente do Reino Unido ou da Itália. Acresce que a maioria dos países, como a Finlândia, a Suécia, a Holanda ou a Alemanha, adoptaram uma gestão de tipo ministerial, cada ministério gerindo o seu próprio pessoal, com dificuldades inerentes à coordenação de políticas públicas e de mobilidade dos agentes. A situação em França é muito diferente, pelo menos teoricamente, pela existência de um estatuto geral da função pública de âmbito interministerial.

Também a estrutura organizacional do Estado é um elemento a ter em conta. Veja-se o caso da Alemanha que sendo um Estado federal conduz as reformas de modo similar a um estado unitário, como a França, mesmo se as reformas da administração dizem respeito essencialmente aos Lander. Países como a Espanha ou a Itália, com modelos quase-federalistas, as comunidades autónomas ou regiões com grande autonomia, ainda que os responsáveis equivalentes disponham de poderes de coordenação dos diferentes serviços desconcentrados do Estado bem mais desenvolvidos que em França, seguiram modelos mais descentralizados de reforma. As relações centro/local jogam, portanto, um papel importante em matéria de reforma do Estado.

No que concerne aos efeitos destas políticas de reforma, é possível constatar uma correlação entre o controlo das finanças públicas, observado nos diferentes países, e a melhoria das performances dos serviços, embora não possamos estabelecer um nexo de causalidade. Veja-se, no entanto, o caso do Reino Unido, onde a par da referida melhoria, observável, em particular, no plano interno com a melhoria global da organização administrativa, mas onde, igualmente, surge um fosso cada vez maior entre a alta função pública e os executores, com o consequente desmembramento da cultura administrativa. Situação semelhante começa a surgir em França, dando origem, em particular, a uma crise de poder nos altos quadros de gestão.

Quanto à satisfação dos clientes, é ainda difícil de avaliar, evidenciando o muito que há por fazer em matéria de avaliação das reformas, pese embora, por exemplo no Reino Unido, se manterem muito elevadas as exigências de maior qualidade nos serviços públicos por parte dos utentes.


 
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