Os movimentos de reforma e a "accountability"
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3.2. O valor da governação para os cidadãos

Certos políticos e os media encorajam os cidadãos a perguntar “quanto custa o Estado?” Em resposta os gestores públicos cortam nas despesas, reduzindo ou eliminado programas ou serviços. Estas acções actuam apenas no lado dos custos da governação. Uma perspectiva de valor dá também atenção aos ganhos e benefícios que os cidadãos recebem do estado, encorajando os cidadãos a perguntar “quais são as vantagens, ou o valor, da governação para os cidadãos?”. Será que os cidadãos sabem quanto estão a receber do Estado? E não só da Administração central, mas também da Administração local e das empresas públicas.

De acordo com a teoria do valor, os indivíduos recebem utilidade quando usam, detêm ou consomem um bem. No entanto, a utilidade de cada unidade consumida vai diminuindo à medida que consumimos mais, nisto consistindo a utilidade marginal [12]. O valor é então uma medida da importância da utilidade marginal. Os bens adquirem valor devido à sua capacidade de satisfazer as necessidades das pessoas e à importância dessas necessidades, levando os produtores a competir para criar bens que originem valor incremental para os indivíduos [13].

É importante distinguir entre o valor real e o valor percebido. O valor real é o verdadeiro valor dos benefícios obtidos pelo uso ou posse de um activo, produto ou serviço. O valor percebido é o valor atribuído aos bens pelos consumidores. O valor de mercado resulta não apenas do valor económico inerente dos bens mas também da percepção que os consumidores têm do seu valor e da importância que dão ao bem. Assim, os consumidores podem atribuir um valor desajustado a um bem porque não possuem toda a informação ou porque não estão convencidos de que o produto ou serviço lhes fornecerá o valor prometido pelo fornecedor.

Certos serviços fornecidos pelo Estado têm um valor tangível e pode, ou deve poder, ser calculado e comunicado aos cidadãos, como por exemplo, o quanto os cidadãos poupam por ter os filhos a estudar numa escola pública. Porém, é mais difícil atribuir valor a serviços como os prestados pela polícia, pela protecção do ambiente, etc.

O modelo do valor tem o mérito de introduzir o conceito no debate sobre a governação e de centrar a discussão na sua criação. Os cidadãos apenas investem na comunidade, em tempo e dinheiro, se tiverem a expectativa de retorno, quer no curto quer no longo prazo. O Estado não deve, pois, limitar-se a fornecer serviços, devendo igualmente preocupar-se em criar valor para os destinatários. Os cidadãos não recebem valor apenas porque a Administração é eficiente no fornecimento de serviços, sendo necessário que os serviços fornecidos sejam importantes para os cidadãos. Caricaturando, para fazer a “boa acção do dia” não podemos obrigar a “velhinha” a atravessar a estrada se ela, simplesmente, não é isso que deseja.

Relacionada com a ideia de valor está a forma como o Estado encara os seus cidadãos e a forma como estes se vêem a si próprios. De acordo com o modelo cidadão-cliente, existe um contrato de prestação de serviços entre os cidadãos, agora clientes, e o Estado, em que os gestores públicos estabelecem uma relação com os que pagam impostos do mesmo modo que é estabelecida nas empresas com os seus clientes. Este modelo tem sido criticado por considerar o cidadão como consumidor passivo, que gosta ou não dos serviços recebidos e exprime a sua opinião através de reclamações ou de sondagens, e onde os clientes podem não ser cidadãos, sendo vistos individualmente, na prossecução de um interesse pessoal, e não numa perspectiva de um elemento de uma comunidade. Note-se que dizer a satisfação dos consumidores não é o mesmo que dizer a soberania dos cidadãos, pelo que, enquanto o modelo do cliente pode ajudar a galvanizar a administração para a satisfação do cliente, importantes limitações permanecem em relação a como os cidadãos devem ver a sua relação com a administração.

O modelo cidadão-proprietário por outro lado, vê o cidadão como proprietário do Estado, que é pró-activo na gestão dos assuntos da governação. Contudo, os cidadãos não se envolvem necessariamente no seu negócio, o Estado, e, frequentemente, não acompanham as actividades da governação, não votam, sentem-se impotentes a lidar com a burocracia e com os burocratas. Em termos práticos, os cidadãos não conseguem exercer os seus direitos de proprietários, em virtude do seu pouco tempo disponível, pouca informação e influência na governação, hierarquicamente estruturada e centralizada.

Finalmente, na óptica do modelo cidadão-investidor, os cidadãos devem ser vistos como investidores inteligentes que co-investem os seus recursos na comunidade e na governação, esperando receber mais valias. Podem contribuir com dinheiro para um parque infantil na sua região, podem dar parte do seu tempo ao serviço de uma comissão da escola onde os seus filhos estudam, etc. O modelo do valor sugere que os cidadãos interagem na governação porque estão motivados para a criação de valor para eles próprios e para a comunidade. Os impostos pagos são um investimento no “negócio” e o tempo gasto em voluntariado é um investimento na qualidade de vida da comunidade. Como “accionistas” os cidadãos trabalham em conjunto para influenciar a criação de bem-estar e de retorno do investimento efectuado.

Os gestores públicos devem, pois, comunicar e reforçar o debate público sobre a consciencialização do valor da governação para os cidadãos e qual o papel da administração na criação de valor para a comunidade. Este processo poderá ser feito através de conferências, debates promovidos por Organizações Não Governamentais, programas de grande audiência (um bom exemplo é o programa de rádio “Fórum TSF”), e, fundamentalmente, através de mudanças nos currículos escolares. Deverá ocorrer uma mudança na filosofia dos gestores públicos, centrando o interesse geral não só ao nível macro, dos grandes investimentos, mas também ao nível micro da prestação de serviços directos aos cidadãos. A resposta à questão, por exemplo, da privatização de certos serviços deverá depender da convicção de que os privados poderão fornecer maior valor incremental à comunidade do que o sector público, garantidos que estejam os valores fundamentais da democracia.

Convém no entanto recordar que esta perspectiva não é uma panaceia, e que apesar dos gestores públicos tentarem convencer os cidadãos do valor da governação, estes podem ser cépticos e relutantes em acreditar nas reais mudanças prometidas, o que só poderá ser combatido com crescentes conquistas de níveis de confiança, reduzindo a desconfiança ao ponto em que ela é salutar à democracia, ou seja, evidenciando aos governantes que os cidadãos estão presentes e atentos aos seus actos. A confiança é um enorme desafio, e a sua introdução na gestão pública, vem certamente complicar mais os modelos gestionários. Talvez a complexidade que se apresenta seja sinal de que este é o caminho, pois a experiência demonstra que, em democracia, as soluções “chave na mão” são sempre pouco recomendáveis. As soluções de governação exigem um tempo de interiorização, de compreensão, que os cidadãos nem sempre estão dispostos a despender.

O aumento dos níveis de confiança junto dos cidadãos é, pois, um processo lento mas que se espera progressivo, passando pela adesão a um conjunto de práticas, das quais se destacam:

Em síntese, prescindir, ou não incentivar os valores de cidadania é, mesmo numa óptica racionalista, uma má decisão, com custos elevados no desenvolvimento humano e no consumo de recursos.


 
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