Os movimentos de reforma e a "accountability" |
3. O carácter democrático da Administração Pública
3.1. Em busca do significado de “accountability”
Nas sociedades democráticas aceita-se como natural e espera-se dos governantes e do serviço público, que sejam responsáveis perante os cidadãos, acreditando-se que o fortalecimento da accountability e o aperfeiçoamento das práticas administrativas caminham lado a lado. Utilizámos intencionalmente e por agora a palavra accountability, na sua expressão original, já que, de facto, parece, ainda hoje, não existir uma tradução simples para português. De facto, ao longo dos anos foi-se verificando que o que faltava em Portugal não seria propriamente a tradução da palavra accountability, que sempre poderia ser traduzida por prestação de contas, mas o próprio conceito, com consequências graves para a noção da própria democracia. Assistíamos, e em parte persiste, por parte dos políticos e dos funcionários da administração, ao desrespeito pelos cidadãos (exceptuando, naturalmente, aqueles que têm um conhecimento pessoal do interlocutor) e a uma frequente falta de zelo pelos dinheiros públicos, e, pelo lado dos cidadãos, a uma atitude de relativa passividade quanto ao favoritismo, ao nepotismo e ao desperdício de recursos. Fica-nos a dúvida sobre as razões que levam as pessoas a ser tão complacentes: porque é que os cidadãos não têm consciência dos seus direitos como contribuintes, se comportam como clientes e não como patrões nas suas relações com os serviços públicos, porque é que os funcionários públicos se consideram empregados dos seus chefes e não dos cidadãos. Sendo a linguagem um sistema de códigos para a transmissão de símbolos e ideias, uma palavra inexistente, numa das línguas mais ricas do universo, sublinhe-se, é um indício, por certo, da ausência de um aspecto da realidade e da maneira como a sociedade o percebe.
Em Portugal, destacaríamos, em termos institucionais, como causas do défice de accountability:
a) O primado da cultura orçamental – dedica-se demasiado tempo a discutir o Orçamento e negligencia-se por completo a Conta Geral do Estado, essa sim, evidenciadora do que foi realizado face ao previsto;
b) O predomínio de políticas públicas “input based” – a preocupação é quanto custa e não quanto vale;
c) A grande capacidade de mobilização e justificação social da despesa – é fácil justificar a despesa porque os cidadãos consideram a despesa um direito adquirido, insusceptível de ser retirado, ainda que já não faça sentido ou que os recursos sejam escassos.
Quando falamos de prestação de contas ligada ao sector público podemos encontrar 4 grandes tipos [11]:
a) Prestação de contas hierárquica – definida como interna e apresentando um elevado grau de controlo. Manifesta-se nos papéis de cada actor da organização, relações de supervisão, regras, procedimentos, sendo os relacionamentos baseados na expectativa de cumprimento das directivas organizacionais;
b) Prestação de contas legal – resulta de fontes externas que exercem um elevado grau de controlo e validação. Manifesta-se nas actividades de auditoria, podendo a avaliação de performance ser levada a cabo pelos tribunais de contas ou órgãos de auditoria de forma independente;
c) Prestação de contas profissional – resulta de fontes internas mas envolve um baixo nível de controlo e um alto nível de discernimento na forma de responder às expectativas de performance;
d) Prestação de contas política – resulta de fontes externas mas envolve baixos níveis de controlo directo. As relações são baseadas na expectativa de dar resposta aos diversos actores.
Mosher (1968) apresenta a palavra accountability como sinónimo da obrigação de responder por algo, de responsabilidade objectiva, e como conceito oposto, mas não necessariamente incompatível, a responsabilidade subjectiva. Enquanto a responsabilidade subjectiva vem de dentro da pessoa, a accountability, sendo uma responsabilidade objectiva, acarreta a responsabilidade de uma pessoa ou organização perante outra pessoa, fora de si mesma, por alguma coisa ou por algum tipo de desempenho. A propósito da noção de responsabilidade, Tavares (2003) identifica-a como “o estado em que alguém (responsável) se encontra, pelo qual, por força de um compromisso (…) fica sujeito a responder, a «prestar contas» pelos seus actos”, identificando seis tipos de responsabilidade no âmbito da gestão pública, a saber, responsabilidade política (apreciada por órgãos políticos), criminal e civil (ambas apreciadas pelos tribunais), disciplinar (apreciada pelos órgãos da Administração), financeira (apreciada pelo Tribunal de Contas) e social (apreciada pela sociedade).