A introdução de mecanismos de contratualização no interior da administração pública
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2. A desintervenção do Estado e os mecanismos tipo mercado

a) Enquadramento

Com o decurso do século vinte, assistimos ao alargamento progressivo das funções do Estado, que da mera manutenção da ordem e da segurança interna e da protecção contra as agressões externas, se estenderam aos sectores sociais. Este processo, com um grande impulso no pós-segunda guerra mundial, atingiu o auge em meados da década de 70.

De modo a corresponder às crescentes solicitações ao Estado, foram sendo desenvolvidas estruturas formais para a Administração, assentes nos princípios burocráticos, (no profissionalismo dos funcionários, nos princípios da hierarquia, na unidade da Administração, na autoridade e no distanciamento em relação aos cidadãos), com o objectivo de assegurar uma unidade de comando e de coordenação das actividades administrativas, bem como a uniformidade e o controlo legal da actuação, e de aumentar a eficiência e a produtividade, garantindo um tratamento objectivo e imparcial dos cidadãos.

No entanto, essa mesma extensão das funções do Estado, em especial com a emergência do Estado providência, confrontou as sociedades com a "crescente alienação dos cidadãos face ao progressivo poder da burocracia" [1], e especialmente face ao exacerbar dos seus principais aspectos negativos, dos quais se salienta a limitação da iniciativa individual dos funcionários, bem como o défice da participação dos cidadãos nas tomadas de decisão.

Assim, como forma de evitar os excessos da burocracia, designadamente o perigo que representa a sua crescente autonomia na definição e aplicação das políticas, sobrepondo por vezes os interesses da Administração aos das instituições democráticas que devem representar os cidadãos e aos dos próprios cidadãos, as sociedades sentiram, por um lado, a necessidade de proceder a alterações nos mecanismos de funcionamento da Administração pública e, por outro, de reduzir a sua intervenção na prestação de serviços.

Há a considerar também, que o ambiente cada vez mais complexo em que as organizações públicas operam, reflectindo uma "trajectória de transformação de uma sociedade industrial para uma sociedade do conhecimento" [2], a que está associada uma mudança tecnológica muito rápida, conduziu ao aumento da necessidade de mais eficiência e inovação, requerendo novas formas de coordenação.

É neste contexto, que dentro do "modelo clássico da Administração, baseado nos princípios da unidade, do centralismo, da hierarquia e da autoridade, e na separação entre o público e o privado, se têm vindo a sobrepor os princípios da diferenciação e da diversidade, da descentralização, da autonomia, das parcerias entre o público e o privado, bem como a contratualização e a lógica do mercado" [3].

Em termos práticos, verifica-se estarem em curso, um pouco por todo lado, reformas que visam reduzir o envolvimento directo das administrações públicas na produção de bens e prestações de serviços, quer pelo incremento da participação dos privados no domínio dos serviços públicos, quer pela introdução de mecanismos de concorrência. Assiste-se assim, à criação de um mercado de bens públicos em que se verifica uma crescente competitividade entre o Estado e os investidores privados.

As várias abordagens, que surgiram para fazer face a este desafio, incluem um leque muito vasto de conceitos, como a privatização, a liberalização, a desregulação, a diminuição do peso do Estado, a redução da Administração às tarefas reguladoras, a criação de novas estruturas institucionais, para gerir e prestar programas e serviços públicos, a descentralização para os governos locais, a introdução de mecanismos de mercado na própria Administração pública e novas formas de prestar os serviços dentro da Administração tradicional.


b) A desintervenção do Estado

No quadro que foi descrito insere-se a desintervenção pública, ou seja a redução da participação do Estado na produção ou prestação de bens e serviços, cujos mecanismos são tipicamente quatro: a privatização, a delegação ou concessão temporária da gestão, o reconhecimento oficial e a credenciação de entidades privadas, a contratação de serviços pelas entidades públicas a entidades privadas ("contracting out").

A desintervenção do Estado suscita assim a intervenção de privados nas tarefas e serviços públicos, de regulação (designadamente através das ordens profissionais), de organização e operação dos serviços públicos (através da concessão ou do arrendamento de serviços públicos, do estabelecimento de contratos de gestão e de contratos de cooperação) e de gestão dos estabelecimentos ou serviços públicos (nomeadamente por empresas em forma de sociedade comercial ou fundações).


c) Os mecanismos tipo mercado

Em simultâneo com a privatização, assiste-se também à introdução de formas de gestão empresarial nos serviços cuja responsabilidade permanece pública, incluindo dentro dos organismos da Administração pública tradicional. Dentro dessas organizações, aos instrumentos típicos do direito administrativo, vão-se associando instrumentos próprios do direito privado, os quais são conhecidos, na terminologia da OCDE, como "mecanismos tipo mercado" (MTM).

A introdução destes mecanismos de autonomização e de privatização organizativa dos organismos públicos representa também, a par da desintervenção, ou seja da externalização ou delegação a terceiros, uma desoneração da Administração tradicional, quer pela descentralização das responsabilidades para unidades independentes, quer pela simplificação dos procedimentos administrativos tradicionais.

Esta descentralização de responsabilidades e simplificação de procedimentos expressa-se designadamente através das seguintes formas:

É em particular sobre a contratualização que se centra este texto, procurando-se no ponto seguinte caracterizá-la, clarificando os aspectos que a tornam distinta das demais formas de privatização e de privatização da gestão, bem como identificar as diferentes configurações que pode assumir, o seu âmbito de aplicação, os seus objectivos e os pressupostos da sua utilização.

 
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