Finalidades extrafiscais da tributação especial do consumo
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2.3. Princípio do benefício

Um outro objectivo extrafiscal da tributação especial do consumo, em certa medida também ligado ao anterior, assenta no princípio do benefício ou da equivalência. Este princípio constitui, tradicionalmente, um dos princípios básicos de justiça fiscal no que se refere à repartição ou capacidade fiscal, a par do princípio da capacidade contributiva. Em conformidade com o princípio do benefício cada um deve ser tributado consoante os benefícios que colhe dos bens públicos. Assim, os impostos devem corresponder ao valor ou ao custo dos bens disponibilizados pelo Estado aos contribuintes. Por sua vez, de acordo com o princípio da capacidade contributiva cada um deve pagar em função da sua capacidade, ou seja, os impostos devem corresponder às capacidades económicas dos contribuintes, sem dependência da estrutura das despesas públicas e da utilidade que delas retiram [24].

Deste modo, segundo o princípio do benefício, a tributação de determinados bens pretende pôr a cargo dos utilizadores de certos serviços públicos os correspondentes custos. A aquisição desses bens constitui, desse modo, como que um “índice da utilização” dos serviços do Estado pelos contribuintes [25]. A este respeito, TIPKE (1993a: 477) refere mesmo que “… em determinadas situações, o recurso ao princípio da equivalência não só é imaginável, mas obrigatório. Na medida em que uma prestação de um ente público se revista de um carácter especial em que não participem todos os cidadãos e que só seja requerida por parte dos cidadãos, não só é defensável, mas obrigatório que se estabeleça um tributo como contraprestação equivalente (Äquivalenz)”.

O exemplo mais representativo deste tipo de racionalização é o da tributação do sector automóvel, em particular dos impostos sobre os combustíveis [26]. Estes tributos destinar-se-iam, assim, a cobrir as despesas inerentes, designadamente, à construção e/ou manutenção das estradas. Dito de outro modo, estes impostos corresponderiam, de certa forma, aos preços dos bens ou serviços públicos utilizados pelos utentes, que no caso especial daqueles tributos seriam os utentes das estradas. Com efeito, de uma forma simplista, é possível afirmar que o consumo de combustíveis encontra-se relacionado com as distâncias percorridas e, consequentemente, com os benefícios auferidos pelos utilizadores das vias públicas. Nestes termos, a tributação de tais produtos será, em certa medida, proporcional aos benefícios usufruídos pelos automobilistas.

A implantação de impostos segundo esta lógica encontra, todavia, diversas dificuldades. Em primeiro lugar, a delimitação do universo dos contribuintes, que poderá ser menos ou mais complexa, consoante estejam em causa utilidades divisíveis ou indivisíveis. Para além disso, é necessário proceder à determinação da medida dos benefícios auferidos por cada um dos utilizadores desses bens ou serviços públicos. Ora, não é fácil proceder à identificação e correspondente quantificação dos benefícios dos utentes ou dos custos desses serviços - solução mais corrente -, de forma a encontrar o "preço" justo a cobrar pela sua disponibilização aos respectivos utilizadores. Com efeito, no que diz respeito, designadamente, aos impostos sobre o sector automóvel, é preciso calcular, para além das despesas de construção das vias públicas, o valor da correspondente manutenção, bem como o do seu congestionamento resultante do tráfego que aí circula e outros custos associados. Acresce, naturalmente, que esses custos vão variar consoante o tipo de estrada, a espécie de veículo, o período do dia ou ano e até as condições climatéricas. Por outro lado, no caso dos impostos sobre os combustíveis, por exemplo, haverá, segundo aquela lógica, que excluir da tributação os combustíveis utilizados para outros fins, designadamente agrícolas ou industriais [27].

Deste modo, o cômputo e a imputação dos benefícios ou custos associados a determinados serviços públicos de forma a arquitectar a tributação segundo o princípio do benefício constituem seguramente uma tarefa bastante complexa. É o caso, nomeadamente, dos citados impostos sobre o sector automóvel. Este factor, a par da circunstância dos impostos incidentes sobre aquele sector serem, em geral, de fácil administração e poderem, em certa medida, como veremos, serem configurados por forma a introduzirem alguma progressividade no sistema fiscal, tem contribuído para que tal finalidade extrafiscal seja, em boa parte, subordinada ao objectivo de obtenção de receitas, dadas as suas potencialidades a este nível.

No entanto, a lógica subjacente aos impostos desenhados de acordo com aquele princípio afigura-se, à partida, bastante válida, desde que, obviamente, as receitas geradas sejam afectas às despesas que estiveram na base da instituição desses tributos [28]. Todavia, também a este respeito, os estudos disponíveis não parecem confirmar inteiramente essa condição, sem a qual a racionalização subjacente a esses impostos fica, necessariamente, debilitada [29][30].

Uma afloração deste princípio consta expressamente do preâmbulo do diploma que aprovou o Código dos Impostos Especiais de Consumo, em conformidade com o qual estas figuras tributárias assentam “… num princípio legitimador distinto do da capacidade contributiva, um princípio de equivalência ou benefício”. Porém, a este respeito, e sem ser possível efectuar nesta sede uma análise detalhada da generalidade do regime legal destes impostos, sempre se dirá que algumas das soluções aí consagradas não se afiguram consentâneas com a lógica subjacente a tais princípios, parecendo antes resultar do necessário compromisso com a prossecução de outros objectivos, nomeadamente fiscais, ou políticas de outra natureza [31].

 
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