Finalidades extrafiscais da tributação especial do consumo
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2.4. Contribuição para a progressividade

À tributação especial do consumo costuma, ainda, ser geralmente atribuída a finalidade de contribuir para a progressividade do sistema fiscal, como atrás afloramos. Encontram-se, assim, aqui presentes considerações de equidade, associadas à concepção de que determinados bens devem ser tributados mais fortemente, dado o respectivo consumo indiciar uma superior capacidade contributiva. É o caso, tipicamente, dos impostos sobre consumos de luxo, característicos dos consumidores pertencentes aos estratos de rendimento mais elevados. O contributo para a progressividade decorrente de tais impostos resulta, conforme refere T. RIBEIRO (1997: 335), do entendimento de que as despesas em bens de luxo são mais do que proporcionais ao rendimento [32].

Porém, a definição do que se deve entender por bens de luxo, ou do próprio conceito de luxo, é extremamente problemática e insusceptível de uma formulação consensual e universal [33]. Na verdade, como salienta P. CUNHA (1963: 155), todos os critérios a que se possa recorrer para qualificar certo produto como luxuoso envolvem, necessariamente, uma apreciável margem de arbítrio. Com efeito, um produto considerado supérfluo ou luxuoso num determinado país ou época é passível de ser reputado indispensável em distintas condições de tempo ou lugar [34]. Acresce que, no plano subjectivo, a intensidade das necessidades e a escala de preferências são naturalmente variáveis consoante os indivíduos [35]. Atentas estas dificuldades, alguns autores optam por proceder à distinção entre bens essenciais e de luxo recorrendo ao critério da elasticidade-rendimento da procura: assim, a sensibilidade da procura a variações do rendimento permite distinguir os bens de luxo dos essenciais, já que os primeiros serão aqueles que se caracterizam por uma elevada elasticidade-rendimento da procura [36].

Independentemente do conceito preciso de bens de luxo, parece possível afirmar, na esteira de EDO HERNÁNDEZ (1992: 309), que, na actualidade, os impostos incidentes sobre esse tipo de bens têm uma presença mais importante nos países menos evoluídos do que nos países mais desenvolvidos. Parece também pacífico que o papel desempenhado por estes impostos nestes últimos países foi mais relevante no passado do que nos tempos que correm. Na verdade, o objectivo de promover a progressividade dos sistemas fiscais, hoje em dia, pode ser mais fácil e eficazmente concretizado através de outros tributos, como os impostos pessoais sobre o rendimento, do que por meio dos impostos especiais sobre o consumo.

Por outro lado, importa notar que à tributação especial do consumo em geral é usualmente atribuída pela doutrina uma clara regressividade. É o caso quando se trata de tributos que gravam bens de largo consumo e não se limitam a incidir sobre bens de luxo. Com efeito, diversos estudos sobre a matéria são unânimes em considerar que os impostos especiais de consumo, na sua generalidade, designadamente os incidentes sobre os denominados “bens tradicionais”, evidenciam uma inequívoca regressividade [37].

Todavia, uma análise parcial incidente sobre os vários tributos com diferente incidência tem revelado resultados bastante distintos. Deste modo, se em relação aos impostos sobre o tabaco e a maior parte das bebidas alcoólicas, como a cerveja e outras, todas as análises os classificam indubitavelmente como regressivos, muito em especial os que gravam o tabaco, já quanto a algumas bebidas alcoólicas, em particular as mais caras, como as espirituosas, não obstante os respectivos tributos se mostrarem também regressivos, esse cunho já é menor. Quanto a estas últimas, as respectivas imposições nalguns casos, com certas especificidades, até podem contribuir para uma certa progressividade. No tocante aos impostos sobre o sector automóvel, nomeadamente sobre os combustíveis, as conclusões desses estudos são já um pouco diferentes, uma vez que se uma boa parte ainda lhes atribuem uma certa regressividade, ainda que menor do que a verificada quanto aos tributos que recaem sobre o tabaco e as bebidas alcoólicas, outros já indiciam alguma progressividade. Cumpre notar, contudo, que os resultados desses estudos variam, naturalmente, consoante os países considerados, mormente face ao seu grau de desenvolvimento, sendo de destacar que em relação aos países mais desenvolvidos as possibilidades de progressividade através do recurso àquele tipo de impostos são normalmente menores [38].

Desses estudos parece ainda poder concluir-se que, não obstante a geral regressividade da tributação especial do consumo, a mesma não é tão marcante e inevitável como tradicionalmente lhe costuma ser assacada [39]. Acresce que a tendência de regressividade atribuída a alguns impostos ou conjunto de impostos é susceptível, mediante algumas condições, de ser atenuada ou mesmo, nalguns casos, invertida [40].

A este propósito, alguns autores, com destaque para CNOSSEN (1977: 48ss) e DUE (1994: 13ss), alinham mesmo algumas condições para que os impostos especiais de consumo possam contribuir para a progressividade do respectivo sistema fiscal: (1) os bens sobre que incidem esses tributos devem revelar uma alta elasticidade-rendimento da procura, ou seja, o consumo desses produtos deve aumentar mais do que proporcionalmente ao rendimento; esta condição resolveria, em parte, como atrás referimos, o problema da definição do conceito de “luxo”; (2) tais bens, por outro lado, devem apresentar uma elasticidade-preço da procura baixa, isto é, devem ser bens de procura pouco elástica, pois de outro modo o consumo reverteria para outros bens sucedâneos não tributados, com óbvias consequências ao nível das receitas arrecadadas; (3) as despesas com os bens objecto desses impostos devem consubstanciar uma importante parcela do consumo global dos estratos de rendimento mais elevados, com pouca influência nos orçamentos das famílias de baixos rendimentos [41]; (4) deve existir a possibilidade de especificar, de modo fácil, as várias categorias dos produtos tributados, de forma a permitir a aplicação de diferentes taxas, consoante a natureza, qualidade ou preço desses produtos; (5) esta última condição não deve prejudicar o requisito relativo à simplicidade na administração desses impostos, nomeadamente no que respeita à precisa determinação dos bens tributados, de modo a evitar dúvidas e conflitos acerca da sua incidência e respectivo controlo; (6) deve ser privilegiado o recurso a taxas “ad valorem”, dado o conhecido efeito regressivo das taxas específicas; (7) por fim, é conveniente que os bens tributados sejam amplamente reconhecidos como sinal de riqueza, já que tal condição facilita, necessariamente, a aceitação do imposto [42].

Assim, e no que concerne em particular aos impostos especiais de consumo incidentes sobre os designados “bens tradicionais”, afigura-se que, em relação aos que gravam o tabaco e as bebidas alcoólicas, o objectivo extrafiscal da progressividade se revela de difícil concretização. Na verdade, tais bens, por norma, são de consumo generalizado, não se encontrando este restrito a certas categorias sociais ou estratos de rendimento. Nos estudos citados, tais impostos são, aliás, reputados, na generalidade dos casos, de regressivos. É certo, porém, que através da mencionada especificação dos produtos tributados será possível minorar esse efeito ou, nalguns casos, mesmo introduzir alguma progressividade. Na verdade, conforme salienta X. BASTO (1991: 21), a graduação dos impostos de acordo com as categorias - e correspondentes preços - dos produtos (marcas de cigarros ou tipos de bebidas alcoólicas) obedece a uma lógica de equidade: os produtos mais caros suportam geralmente uma carga maior, já que tendem a ser consumidos por titulares de rendimentos mais elevados. Esta possibilidade é particularmente pertinente quanto a certo tipo de bebidas alcoólicas, cujo consumo é habitualmente característico de determinados níveis de rendimento mais altos [43].

Já no que respeita aos impostos sobre o sector automóvel, como resulta, desde logo, dos estudos supra citados, a concretização deste objectivo extrafiscal parece mais facilmente exequível. Com efeito, conforme nota CNOSSEN (1977: 54), a procura de veículos automóveis e combustíveis revela usualmente uma elasticidade-rendimento elevada; as despesas com tais bens compreendem uma significativa parte dos orçamentos familiares; os respectivos tributos especiais são relativamente fáceis de administrar e evidenciam um elevado grau de aceitação social. Isto leva mesmo aquele autor a concluir que “… the single most important vehicle for increasing the progressivity of excise systems, particularly in developing countries, is the motoring field”. Deste modo, impostos como os incidentes sobre as próprias viaturas, combustíveis, peças ou outros componentes podem, em certas condições, contribuir para a consecução daquele objectivo [44].

Deste modo, em consonância com o que refere X. BASTO (1991: 21ss), não obstante a finalidade extrafiscal associada à progressividade não poder ser considerada predominante nos impostos especiais de consumo - sendo estes mesmo passíveis de crítica no plano da equidade -, não deve ser desprezada a sua possível contribuição para a progressividade global do sistema [45]. Na verdade, a tributação de determinados bens consumidos “massivamente” por estratos de rendimento médio e elevado concorre para “… melhorar o padrão de distribuição dos encargos fiscais de acordo com os cânones do sistema progressivo”. Assim, na medida em que algumas das despesas em tais bens ocupem um papel significativo nos orçamentos familiares dessas classes de rendimento - não constando dos orçamentos dos estratos de rendimento mais reduzidos -, os impostos que sobre eles recaem, para além de permitirem receitas interessantes, denotam alguma justificação em termos de equidade.

Todavia, este objectivo extrafiscal dos impostos especiais de consumo não parece, hoje em dia, ter uma expressão muita significativa, centrando-se nos países mais desenvolvidos, principalmente, no sector automóvel e nalguns “luxury items”, quanto a estes últimos sem grande expressão em termos de receitas fiscais.

 
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