Notas em torno do dever de diligência dos gestores de sociedades
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3.2. O interesse social na segunda parte do art.º 64.º, do CSC

Apesar de, ao nível jurisprudencial, esta questão ser parcamente abordada [44], a segunda parte do art.º 64.º, do CSC, tem sido objecto de interpretações diversas na nossa doutrina, por força, designadamente, de serem atendidas as diferentes abordagens do conceito de "interesse social".

Não obstante a teoria contratualista ter sido dominante na nossa doutrina durante várias décadas e ainda ser largamente sufragada quer na doutrina, quer na jurisprudência, o legislador optou, na redacção da disposição legal em análise, por uma solução onde aspectos contratualistas coexistem com alguns caracteres institucionalistas.

O autor da disposição demarcou-se expressamente de qualquer uma das teorias tradicionais, no seu estado puro.

Em relação às contratualistas, refere que "... o interesse da sociedade é definido tendo em conta os interesses dos sócios; e poderia até ter dito o 'interesse comum dos sócios como tais' (...) - mas não se quis ir tão longe na definição de algo que está ainda tão sujeito a controvérsia doutrinária" [45]. Acresce que a consagração dos interesses dos trabalhadores afasta igualmente a perspectiva puramente contratualista.

O A. entende que o interesse social se identifica com o das pessoas físicas relacionadas com a sociedade, maxime o dos sócios e o dos trabalhadores. Em relação ao interesse dos sócios, tratar-se-á daquele "para cuja satisfação a sociedade foi constituída"; excluindo-se os interesses extra-sociais, que as teorias contratualistas permitiam vir a ser satisfeitos em determinadas circunstâncias [46].

Relativamente às institucionalistas, tal demarcação decorre do seu entendimento de que a sociedade não tem interesses próprios [47], enquanto pessoa distinta de todos aqueles que com ela se podem relacionar.

Feita esta abordagem dos esclarecimentos avançados pelo A. da norma, cumpre analisar as diversas interpretações da nossa doutrina neste âmbito.

Por um lado, há quem entenda que está aí consagrada apenas a salvaguarda do interesse social, considerando os demais interesses discriminados na letra da lei como vertentes daquele. Por outro, há quem seja de opinião de que estão salvaguardados três interesses: o da sociedade, o dos sócios e o dos trabalhadores.

De acordo com a primeira das interpretações referidas, a segunda parte do art.º 64.º, do CSC, refere-se a um único interesse, o interesse social, sendo que a referência aos interesses dos sócios e dos trabalhadores constitui uma explicitação de elementos concretizadores daquele. Assim, o interesse social integrará, designadamente, os interesses dos sócios enquanto tais, isto é, o interesse comum dos sócios, inerente à constituição da sociedade, e os interesses dos trabalhadores.

COUTINHO DE ABREU, OLIVEIRA ASCENSÃO e ILÍDIO RODRIGUES vêem, na segunda parte do art.º 64.º, do CSC, uma aproximação às teorias institucionalistas [48], ainda que ligeira, em virtude de os interesses dos credores, dos consumidores ou da comunidade não estarem expressamente integrados no interesse social [49]. Desta aproximação decorre que, na definição de interesse social, seja considerado não só o interesse comum dos sócios, o interesse dos sócios enquanto tais, mas também o dos trabalhadores [50]. Sublinham ainda, no entanto, o facto de os interesses que constituem vertentes do interesse social não terem igual peso na actividade dos gestores, sobretudo em virtude de os trabalhadores não terem à sua disposição os mesmos mecanismos de tutela e controlo perante a administração de que os sócios dispõem.

Já a segunda interpretação referida vai no sentido de ver, na disposição em análise, a referência a três interesses distintos, o da sociedade, o dos sócios e o dos trabalhadores.

Nesse seguimento, RAÚL VENTURA entende o "interesse da sociedade" numa perspectiva contratualista, como interesse dos sócios enquanto tais. Quanto aos demais, considerando que os mesmos são distintos do da sociedade, não avança uma justificação para a sua consagração expressa. Refere, no entanto, que o art.º 64.º pretenderá estabelecer uma hierarquia entre os três interesses: de um lado, o interesse da sociedade e, de outro, os interesses dos sócios e os dos trabalhadores, estando estes numa posição hierarquicamente inferior à daquele. Entende ainda que a expressão "interesse dos sócios" não se deverá interpretada como "interesse extra-social", posição que subscrevemos [51].

PEDRO DE ALBUQUERQUE [52], abordando o interesse da sociedade também de acordo com a perspectiva contratualista, vê nos interesses dos sócios e dos trabalhadores meros interesses a considerar pelos gestores, no exercício das suas funções, mas a cuja prossecução estes sujeitos não estão vinculados [53].

PEDRO CAETANO NUNES [54], considerando que há uma vinculação dos gestores aos interesses dos sócios e dos trabalhadores, vê no art.º 64.º, do CSC, a imposição de uma actuação diligente na prossecução dos interesses individuais dos accionistas, sob pena de a previsão expressa não ter conteúdo útil.

Cumpre ainda referir que a interpretação da expressão "interesse dos sócios" tem merecido, também ela, diferentes entendimentos.

Assim, há quem a encare enquanto interesse pessoal dos sócios [55] ou enquanto interesse individual ou extra-social, ou seja, como o interesse que, não sendo exclusivamente de ordem pessoal, mas conexionando-se com o facto de o sócio possuir tal qualidade, respeita a cada sócio individualmente [56].

COUTINHO DE ABREU [57] considera não se poder entender "interesse dos sócios" como interesse pessoal dos sócios e/ou interesses comuns aos sócios, mas não conformes com a finalidade da sociedade [58], opinião que subscrevemos.


 
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