Notas em torno do dever de diligência dos gestores de sociedades
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3.3. Relevância prática da segunda parte do art.º 64.º, do CSC

A nossa doutrina tem, na generalidade, apontado à segunda parte do art.º 64.º, do CSC, a sua falta de pragmatismo e a sua eventual desnecessidade.

Com efeito, o respeito pelo interesse social está necessariamente contido no dever de diligência [59]. Por outro lado, não existem mecanismos de tutela complementares que confiram pragmatismo à disposição, tornando a sua utilidade reduzida.

RAÚL VENTURA, precisamente por considerar que o respeito pelo interesse social já decorre do próprio conceito indeterminado contido na primeira parte da disposição legal, reputa a segunda parte de desnecessária e fonte de dificuldades interpretativas, nomeadamente no que respeita à conjugação e compatibilização do interesse dos sócios e dos trabalhadores com o interesse social [60].

Em sentido semelhante, para MENEZES CORDEIRO "... não há razões sólidas ou, sequer pensadas, que amparem (...) a 2.ª parte do artigo 64.º" [61].

COUTINHO DE ABREU aponta na norma, acima de tudo, falta de clareza [62], considerando que deverá ser entendido "interesse dos sócios como 'interesse social comum' (...), interesse comum a todos os sócios na realização do lucro através da actividade da sociedade - não beneficiando uns sócios em detrimento dos outros" [63].

Quanto ao "interesse dos trabalhadores", e em virtude da inexistência de mecanismos de tutela complementares, entende que os mesmos poderão, ainda assim, ser invocados, designadamente em sede de acção de responsabilidade intentada pelos sócios contra os gestores, podendo relevar em termos de prova de actuação não culposa por parte dos últimos, excluindo ou limitando a sua culpa, não obstante a ilicitude do acto [64].

Em relação ainda aos interesses dos trabalhadores, PEDRO CAETANO NUNES [65] considera que os mesmos poderão relevar, não em sede de exclusão da culpa dos gestores, mas em sede de exclusão da ilicitude, por se estar perante uma situação de conflito de deveres, conduzindo à necessidade de os restringir. Assim, a restrição, v.g., dos interesses dos accionistas não consubstancia um acto ilícito, quando tal tenha sucedido em virtude da prossecução de interesses dos trabalhadores.

Acrescente-se, ainda, que, no que ao interesse dos trabalhadores diz respeito, o Código do Trabalho, aprovado pela L. n.º 99/2003, de 27 de Agosto, continua a não dispor dos referidos mecanismos de tutela complementares. Nos termos do seu art.º 379.º, n.º 2, "os gerentes, administradores ou directores respondem nos termos previstos no artigo anterior desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais e nos moldes aí estabelecidos". Como tal, esta disposição não veio trazer nada de novo ao que já decorria do regime anterior. Acresce que a sua epígrafe ("Responsabilidade dos sócios") é imprecisa e mesmo incorrecta, face ao conteúdo da norma, dado que sócios e gestores são sujeitos distintos que não se confundem.


 
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